terça-feira, 18 de outubro de 2011

MISTÉRIOS DO HORIZONTE

Por
Neith War e The Grey Knight, escrito de 26 de outubro de 2010 a 25 de janeiro de 2011





Houve um momento em que o desejo superou o medo, mas esse momento foi embora.  E ali, paralisado no meio da autoestrada, Dionísio se perguntava o que fazer.  Como não confundir aquele instante de paralisia com indecisão?  Mas, se havia um traço de personalidade que pouco habitava a alma de Dionísio, era a indecisão.  O que ele sentia, ali parado como se esperasse a chuva despencar sobre seu corpo e alma, era apreensão.  Ansiedade.  A apreensão do conhecimento.  Ele sabia, conhecia, e conhecendo, tinha poder.  Mas esse poder não lhe dava – ironicamente – o direito de fazer o que até há pouco estava desejando fazer.  Certamente, o arrependimento viria, tão certeiro quanto a flecha de um Cupido.




Longe dali, num barzinho super badalado, Lívia se divertia bebendo com as amigas. O som estava muito alto, um psy trance cheio de energia, os corpos movimentavam-se como um oceano de carne humana, alguns, alteradíssimos pelo uso de entorpecentes, dançavam freneticamente ao som alucinante.

Era a primeira vez de Lívia naquele bar, suas amigas haviam insistido para que fosse, achavam que ela precisava se distrair um pouco. Lívia olhou para o teto do barracão onde o bar era instalado, sentiu a cabeça girar, abaixou-se entre a multidão e com as cabeças entre as pernas, arrependeu-se de ter misturado a bebida com o alucinógeno oferecido por um rapaz que conheceu lá, nunca havia feito uso de drogas em sua vida, e agora sentia-se estúpida por estar tão mal. Abaixou ainda mais a cabeça e sentiu que ia vomitar, seu estômago doía absurdamente, com as mãos apertando a barriga levantou-se com dificuldade e foi em direção ao banheiro, as pessoas pareciam loucas dançando aquele som ensurdecedor, foi difícil passar entre elas sem levar cotoveladas e empurrões.

Quando chegou ao banheiro, ele estava vazio, suspirou aliviada por poder ficar um pouco sozinha. Molhou as mãos na água da pia e passou na testa, e com as mãos apoiadas na borda da pia, fitou seu rosto cansado. Apesar da maquiagem estar toda borrada ainda podia-se ver que Lívia era uma linda garota, algumas mechas cacheadas caíam suavemente em sua face, o contraste dos cabelos vermelhos na pele branca a deixava ainda mais sensual, seus olhos eram de um azul violeta e expressavam uma profunda tristeza por ter sido tão tola, devia ter ficado em casa. Suspirou resignada e mais uma vez molhou o rosto.  O banheiro era sujo e úmido e a fazia lembrar-se dos banheiros de filmes de terror, riu alto quando pensou nisso e falou para si mesma, “Lívia… você realmente está muy loka, amiga!”

Saiu do banheiro e foi direto para os enormes sofás dispostos ao redor da pista de dança, agradeceu mais uma vez por achar um local para se sentar, a maioria das pessoas ainda dançava freneticamente, não se cansavam de repetirem os mesmos passos música após música. Fechou os olhos por um instante, e então ouviu quando a música eletrônica deu lugar à uma outra música, Change, do Deftones, abriu os olhos assustada com a mudança brusca e teve uma grande surpresa: estava sozinha no imenso salão, esfregou as mãos nos olhos para ter certeza de que estava bem acordada, e quando olhou novamente ao redor, percebeu que o local todo estava coberto por um denso nevoeiro, as luzes coloriam de forma bruxuleante aquela névoa, a música parecia entrar em seu corpo. Lívia sentiu que seu coração iria explodir, tamanha era a força com que batia.

Do meio da névoa surgiu um Vulto que caminhava lentamente em sua direção, sentiu a respiração falhar, estava horrorizada com aquela situação, o medo dominava sua mente, e então, encolhendo-se toda no canto, colocou as mãos no rosto e começou a gritar desesperadamente, sentiu que várias mãos tentavam controlá-la e tentava afastá-las gritando ainda mais alto, então ouviu a voz familiar, era Vanessa, com uma cara assustadíssima.

“Lívia??? O que houve??”

Lívia olhou meio sem saber o que dizer, a música psy irritante continuava a tocar normalmente e não havia névoa alguma, olhou meio atordoada para a amiga e disse, “Só me leve embora daqui, Vanessa...”

Milhares de vozes se calaram de uma só vez, mas a cabeça do Guardião do Poço continuava em silêncio, empalada numa lança erguida contra os céus de cor azul, quase negra.  Raios cruzaram os céus como veias elétricas e fugazes, mas o que restava do Guardião do Poço não se abalou nem disse nada, nenhum oráculo, nem súplica: só seu olhar que me trespassava mais que a lança que o matara.

Dionísio não tinha culpa dessa estranha sinalização, postada no centro de uma encruzilhada que encontrou andando pela rodovia sinuosa, ter sido morta há milhões de anos e ainda nutrir rancor contra quem lhe fizesse perguntas.

Deve ser a chatice do serviço, pensou Dionísio.

Olhou em redor e só enxergou as brumas escaldantes ficarem mais densas, quase ultrapassando os limites do meio-fio.  Não era coisa para qualquer um, andar pela estrada que se esconde por detrás do mundo, a pé, e ser tão efetivo como uma pessoa de carro pelas autoestradas do mundo material.

O próprio tempo era diferente ali, e era muito difícil entender coisas como pontos cardeais, referências espaciais e linhas retas.  O melhor era simplesmente relaxar, andar e esquecer todas essas noções, porque se elas se aplicavam ali, seus significados eram diferentes.

Dionísio suspirou e virou a cabeça para os três caminhos que partiam do poste do Guardião.  Parecia que este não iria cobrar pedágio, mas deveria cobrar caro por informações, só que saber isso não adiantava muita coisa, porque ele ficava mudo até que a oferenda correta fosse apresentada.

E Dionísio não tinha a menor ideia do que era correto.

Em mais de um sentido.

Mas ele tinha uma vantagem, justamente por causa disso: ele era um dos Vultos Vulpinos, um Vampiro Vagante, uma sombra de olhos faiscantes, vinda das profundas do Outro Lado, passada além do Portal do Paralelo para vestir a mente e o corpo de um ser humano que um dia se chamou Dionísio Autran.

Agora ele era só Dionísio, e tinha pressa, embora muita paciência.

A chuva começou a cair, primeiro fina e depois dando sinais que chegaria a uma torrente, ameaçando esmagar quem quer que estivesse exposto na encruzilhada.  Dionísio ignorou o olhar ríspido da cabeça de olhos brilhantes, e adiantou-se até um das saídas, e não aquela por onde veio.

As brumas reagiram à chuva e ao viajante, o estrondo nos céus ficou mais alto, e foi mudando, mudando de tom e ritmo, de forma quase senciente.  Dionísio deu mais alguns passos, e o véu da passagem acariciou o seu corpo, que o sentia como duas músicas distintas unidas num só caleidoscópio sonoro.

Ali, ele não conseguia enxergar o que vinha à frente, onde ia dar, mas sabia que poderia ser visto por alguém azarado (ou azarada, quem sabe…?) o suficiente para isso.  Bom, azar para os outros, sorte para ele.




Naquela noite Lívia não conseguiu dormir direito, só conseguiu se sentir mais segura quando o primeiro raio de sol atravessou a veneziana e por isso, depois de um demorado banho deitou-se confortavelmente em sua cama.

Sua cabeça ainda doía um pouco, aquela imagem bizarra não saía de sua mente, a música, a névoa. E foi com estas lembranças que seus olhos se fecharam lentamente e então, quando o sonho já chegava para descansá-la, sentiu afundar na cama e a sensação de sufoco a fez debater-se, como se estivesse presa numa areia movediça, tentava gritar mas a voz não saía, a visão estava embaçada e sentia um cheiro estranho no ar. Viu-se num rio de sangue escurecido, milhares de corpos cadavéricos boiando á sua volta, sentiu nojo, e desespero, tentou gritar mas sua voz agora ecoava num tom agudo como se fosse o pio de uma coruja; de repente uma mão ossuda segurou sua perna e a puxou para o fundo, tentava nadar para a superfície mas era inútil, a “coisa” a puxava cada vez mais fundo e os corpos de olhos esbugalhados batiam contra seu corpo desfazendo-se deixando rastros de vermes ao seu redor, sem que ela esperasse viu-se frente a frente com uma criatura horrível, algo assustador que era muito pior do que todos os demônios de que já ouvira falar.

Soltou um grito e engoliu muito sangue, perdeu os sentidos, e então num impulso quase que mecânico, seu corpo virou-se na cama e Lívia vomitou algo parecido com lodo e sangue; continuava desacordada, com o corpo pendendo de lado enquanto vários espectros se aglomeravam ao seu redor sibilando e rindo diabolicamente.

Já faziam 10 minutos que Vanessa batia na porta da casa de Lívia sem obter resposta. “O que será que está acontecendo… não deveria tê-la deixado sozinha.” Vanessa deu a volta na casa, e forçando a porta da cozinha, conseguiu entrar, sabia que aquela porta estava quebrada e que Lívia apenas encostava um mesa para mantê-la fechada.

Subiu as escadas que davam para o quarto e quando chegou lá teve uma terrível visão: Lívia estava caída ao lado da cama em seu próprio vômito. Correu até ela e sacudindo-a gritava para que acordasse, Lívia abriu os olhos com dificuldade, e mal consegui distinguir quem estava à sua frente, sentia-se fraca e zonza.

Vanessa imediatamente pegou o celular e chamou uma ambulância.



O espaço tremulou à frente, borbulhando distorcido como um aglomerado de formas rodopiantes.  Dionísio havia ultrapassando a encruzilhada.  Suspirou, não de alívio, mas de uma sensação inesperada de cansaço: que impressão estranha era aquela, de que algo estava faltando?  Era como se sua essência houvesse ido parar de novo no Sheol, no Xibalba, no Hades, qualquer que seja o nome que os mortais deem a esse lugar que não é lugar.

Com aquele estranho peso no peito, como se de uma perda terrível, a sombra que vestia o corpo de Dionísio Autran se achou olhando para o espelho de um banheiro feminino.  Felizmente, sua chegada não foi seguida por gritos agudos, nem por um spray de pimenta no rosto.  Ainda bem mesmo, assim seus olhos verde-esmeralda, que chamavam a atenção daqueles que cruzavam o seu caminho, não sofreriam nenhum dano… por temporário que esse dano fosse, qualquer irritação ou ferimento ainda eram dolorosos.

Conforme caminhava para fora do banheiro, aquela sensação de perda foi se refinando, e a nítida ideia de estar atrasado cruzou a mente do Vulto.  Estava numa boate, e já deveria ser dia, porque não havia ninguém dançando na pista, o chão estava cheio de panfletos, sujeira, e até uma camisinha usada, e ninguém estava à vista, exceto alguém que costuma ser quase invisível, de tão ignorado: a faxineira que com seu carrinho apanhava o lixo e limpava a bagunça da noite anterior.

A moça de traços comuns levantou a cabeça na direção de Dionísio – estava abaixada, catando o esfregão que caíra no chão – e não enxergou nada, embora sentisse um leve aroma de almíscar, inédito naquele ambiente fedendo a cigarro.

Sem esboçar seu sorriso usual, o Vulto caminhou discretamente, mas passando direto ao lado da servente, incólume.  Mas que sorte, pensou Dionísio.  Que coisa melhor para roubar, que o dom da invisibilidade?  Para aquela mulher, aquilo talvez fosse um fardo, mas para ele, um mito vivo, era de uma utilidade tremenda, e um efeito muito maior e mais efetivo, ali no mundo de carne.  E até um dos três marcos do sol – que ele imaginava ser o meio-dia, pelo jeito – aquela mulher atrairia todo tipo de atenção, desejada e indesejada.  Boa sorte para ela …

O Vulto Vulpino caminhou pelas ruas, sem ser notado pelos cidadãos comuns que perdiam seu tempo, rodando como aves que ciscam por aquela cidade labiríntica, onde morava uma menina, talvez uma moça, talvez uma mulher, talvez uma centelha a despertar para um horizonte novo e cheio de sombras e sangue, chamada Lívia.


Lívia abriu os olhos e ficou alguns instantes imóvel tentando colocar as ideias em ordem. Sua cabeça estava um turbilhão, imagens e lembranças misturavam-se à fantasias.

Olhou para o sofá ao lado da cama de hospital e viu Vanessa dormindo, levantou-se e vestiu sua roupa, que estava em uma cadeira ao lado, pegou a bolsa e saiu do quarto sem nem ao menos se despedir da amiga.

Algumas horas mais tarde, Vanessa acordou assustada com uma enfermeira que a chamava.

“Moça, acorde” a enfermeira cutucava Vanessa incessantemente.

“Hã? O que está havendo, onde esta Lívia?” Vanessa ficou apreensiva ao notar que a amiga não estava na cama.

“Ah, a moça que estava neste quarto já foi embora tem algumas horas. Desculpe incomodar, mas vamos precisar deste quarto.”

Vanessa pegou suas coisas e saiu pensativa. Como Lívia podia ser tão ingrata? Nem lhe agradeceu por ter passado a noite ali com ela.  Magoada, Vanessa foi direto para casa, estava decidida a deixar Lívia se virar sozinha dali por diante.

À noite os amigos combinaram de se encontrar novamente no bar à beira da estrada.  Vanessa já havia bebido bastante e se lamentava para a turma dizendo o quanto Lívia era falsa e ingrata, nem retornara suas ligações. Nesse ponto Laura interferiu:

“Mas, Van… pense bem, Lívia anda sob forte estresse, imagine só, como você se sentiria se fosse a principal suspeita da morte de seu namorado?

Caio segurou a mão de Vanessa e a beijou.  “Você tem feito o que pode por ela meu amor, mas realmente é uma situação complicada, você mesma viu como ela ficou naquele dia em que a convencemos a vir para cá.”

Tiago emendou, “Ela nem se arruma mais, antes estava sempre bem vestida e radiante. Deve estar muito deprimida.”

Vanessa concordou, e suspirando, ergueu o copo para brindarem o fato de estarem ali reunidos, mas os copos pararam no ar, como se alguém tivesse apertado o botão de pause de um aparelho de DVD, as bocas entreabertas e os olhares incrédulos na direção da porta de entrada. No mesmo instante, o DJ colocava a música The Spy do The Doors.

Na porta, Lívia estava parada acendendo um cigarro, usava uma saia curta de couro preta e justíssima, uma blusa tomara que caia vermelha, os cabelos soltos, uma maquiagem forte nos olhos e um batom vermelho que realçava seus lábios carnudos. As sandálias de salto fino davam um balanço serpenteante ao seu corpo bem definido, conforme andava parecia deslizar pelo salão, os homens estavam feito lobos, devorando-a com os olhos.

Lívia sequer olhou para a mesa onde estavam os amigos, parecia uma outra pessoa. Caminhou até o balcão e sentou-se em um banco cruzando as pernas bem torneadas. Não demorou muito para que um rapaz se aproximasse e lhe oferecesse uma bebida, que Lívia sorrindo e esbanjando charme logo aceitou.

Vanessa surtou e queria de qualquer forma ir até lá e saber o que estava acontecendo, mas Caio a impediu. Estavam todos chocados com a cena mas os meninos acharam melhor apenas observar Lívia para ver o que ela pretendia, mesmo porque ela parecia nem ter notado a presença deles ali.

Lívia trocava olhares com o desconhecido, seus gestos insinuantes estavam deixando-o louco.  “Como é o teu nome?” perguntou enquanto acariciava a mão de Lívia.

“E isso realmente importa?” a garota respondeu enquanto descruzava as pernas lentamente e cruzava novamente.

Aquele movimento pareceu hipnotizar o rapaz, ele a desejava de uma forma assustadora. Lívia percebeu e sorriu satisfeita, terminou a bebida e o pegou pela mão arrastando-o para o banheiro masculino. Ele a seguia feito um cachorrinho.

Vanessa que via toda a cena ficou horrorizada, quis ir atrás mas foi impedida por Laura.

No banheiro, Lívia entrou em um dos vários sanitários e abaixou a tampa fazendo com que o homem se sentasse. Beijou seus lábios e depois afastou-se sorrindo.

Podiam ouvir a música que acabava de começar, Angels and Drugs de Christian Death. Lívia começou a dançar sensualmente, as mãos do rapaz percorriam suas curvas, ele estava extremamente excitado. Ela tirou a calcinha e sentou-se no colo dele que já estava com a braguilha aberta.

A música estava muito alta, seus corpos em êxtase, loucos por prazer. O homem deslizou as mãos pelos seios de Lívias e abaixando a blusa vermelha começou a chupá-los alternadamente enquanto a penetrava, Lívia movia seu quadril de forma intensa no colo do rapaz, os gemidos se misturavam com as batidas da música. Estavam quase gozando, quando ela parou e olhou para ele de forma estranha, seus olhos brilharam num tom violeta e isso fez com que ele congelasse de medo.

Ela enfiou as unhas na barriga do rapaz e fez um imenso buraco, ele gritava de dor e desespero mas seus gritos eram abafados pelas gargalhadas de Lívia e a música alta da pista de dança.

Lívia levantou-se e ajeitou a saia e os cabelos. O rapaz continuava gritando com as mãos tentando estancar o sangramento, ficou desesperado ao perceber que suas vísceras saíam e tentava, desajeitado, colocá-las para dentro. Lívia retocou o batom vermelho e encostou-se na beira da pia, de onde podia assistir a cena enquanto acendia um cigarro.

Vanessa estava inquieta na mesa, Caio teve medo de que ela brigasse com Lívia, já que estava bêbada e por isso resolveu ir até o banheiro ver o que estava acontecendo. Ao entrar no banheiro, Caio viu Lívia com um sorriso diabólico nos lábios e um rapaz em um dos sanitários gritando feito louco com as mãos na barriga.

Caio correu até ele e o sacudia pelos ombros. “O que houve? Porque está gritando desse jeito, está ferido?”

O rapaz tirou as mãos da barriga e já ia dizendo algo, quando viu que não havia nada, nenhum corte, nenhum sangue, nada.

Olhou desesperado para Lívia, que se mantinha imóvel como se nada visse, então começou a gritar com ela.

“Bruxa maldita!! O que fez comigo? Seu demônio!” levantou-se tentando ir na direção da garota, mas Caio o segurou, Lívia jogou o cigarro no chão, e sem olhar para Caio, ajeitou mais uma vez os cabelos e saiu do banheiro.



“Mistério” é uma palavra tão bela.

Inevitável não pensar nessa beleza, e no poder dessa palavra, ao vagar invisível pelas ruas da cidade onde vagara Kronos, o Maldito. Ele maculara tudo com seus rastros podres, pensava Dionísio. E ao mesmo tempo, o Mistério que envenenava o ar era tão belo, tão poderoso, tão intoxicante.

O Mistério no ar era como um fio de Ariadne, o vampiro parecia vagar a esmo, mas acabou entrando justamente onde deveria. Justo a tempo de não se encontrar com Lívia, mas a tempo de entrar num lugar terrível, na hora exata. Um hospital da periferia, desgraça institucionalizada, o caos imperava pelos corredores, e um vampiro invisível era algo tão adequado, que todos chegavam até mesmo a se desviar de Dionísio, para não se esbarrar nele. Inconscientemente. Aquela sincronicidade que move os humanos sem que eles percebam.

Lá fora o sol quase alcançava o zênite, quando Dionísio entrou, ainda sem ser visto, num vestíbulo da Unidade de Tratamento Intensivo. Duas pessoas pareciam velar uma moça acidentada, uma delas sentada numa cadeira encostada à parede, a outra também encostada na parede, mas em pé. A primeira era uma mulher digitando lentamente num laptop, os cabelos curtos num penteado excitante, os ombros nus cheios de pequenos cabelos cortados. A segunda era um homem alto, mas não muito, moreno e jovem. A mulher parecia ignorar a presença do vampiro, até que ergueu os olhos, que brilharam numa cor púrpura estranha, e voltou a baixá-los para a tela do computador.

O homem foi menos discreto e segurou o braço de Dionísio com uma força medonha, seus olhos faiscaram azuis, cheios de uma cólera celestial, e por um segundo o aperto foi tremendo, mas o homem percebeu os próprios olhos verde-esmeralda do vampiro e acalmou a pressão no braço do vampiro, mas não o soltou.

“Você é Dionísio.” era uma pergunta e ao mesmo tempo uma declaração.

“Você é Belial.” era uma zombaria e ao mesmo tempo um reconhecimento formal.

Ambos sabiam que aqueles nomes eram temporários, era sempre assim para todos de sua espécie… menos para Kronos, o Maldito. Dionísio se virou para a mulher sentada e repetiu o protocolo: “Você é Astarte.” A moça levantou a cabeça apenas o suficiente para responder: “Não, seu idiota. Meu nome é Belin.”

Dionísio riu baixo, virou-se para o outro vampiro e pediu, “Dá pra me soltar? Tem alguma coisa em você que está me incomodando.” Belial também riu, um pouco mais alto, e respondeu “Tudo nessa cidade deveria estar te incomodando, mas você é esperto o suficiente para não mexer comigo. E então, quais são os seus negócios nesses tempos estranhos?”

“Procuro uma presa,” respondeu o Vulto de olhos esmeralda, estampando um sorriso cínico. “Não estou conseguindo, me perdi pela cidade, isso nunca me aconteceu antes. Não sei por quê vim parar aqui, é uma vergonha.”

“Então pode esquecer,” falou o Vulto de olhos azul-cobalto, largando o braço de Dionísio. “Todas as presas que poderiam lhe servir devem ter sido tomadas pela passagem de Kronos, como esta meni...” Um grito de fúria e dor ecoou pela UTI, saindo das gargantas dos quatro naquele vestíbulo apertado, incluindo a menina hospitalizada. Sons, cheiros e um vislumbre macabro tomaram a mente deles: uma explosão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, dor, o desejo de esquecimento, prazer, sono.

Uma enfermeira puxou as cortinas do vestíbulo, assustada, mas Belin, a primeira a se recuperar do choque, virou-se para ela e disse numa voz firme e calma: “Volte para ao que estava fazendo antes, nos deixe em paz aqui e diga às suas colegas que tudo foi resolvido.”

“Essa cena aconteceu ontem ou vai acontecer hoje à noite?...” a voz trêmula de Dionísio soou baixinho. “Com Kronos, nunca se sabe” respondeu Belial. “Pelo menos ele vai dormir por um bom tempo agora.  Eu quase diria, coitado dele, mas é melhor não te dar mais detalhes, é sempre bom te ver ardendo de curiosidade.”

O olhar de Dionísio ficou meio desesperado: “Não faça isso comigo. Nós somos ladrões de segredos. Eu não quero lutar com você. Por favor.” Belial esperava impassível alguma reação, enquanto Belin balançava a cabeça em desprezo. O rosto de Dionísio mostrava algumas gotas de suor, escorrendo trêmulas. Lá fora, o meio-dia chegava, e uma mão diminuta, mas de garras afiadas, segurou o braço de Dionísio, no mesmo lugar onde Belial agarrara, pouco antes.

O rosto desfigurado da menina até pouco antes desacordada se contorceu num esgar de raiva, seus olhos se fixaram no vampiro hesitante e uma voz discordante saiu dos lábios finos: “Você é Dionísio. Eu sou Ananke, filha de Nemesyn.” A apreensão e ansiedade de Dionísio quase chegaram ao nível de pânico. A garota deitada ao seu lado era um Prematuro. Um horror ancestral que, mesmo sendo Vulto, devorava outros Vultos.

O casal de vampiros recuou um passo da cama, e a menina suicida que agora se dizia chamar Ananke recitou um cântico, uma história antiga declamada por Nemesyn, a primeira de todos os Vultos Vulpinos. O medo no coração inquieto de Dionísio foi se dissipando. Quando terminou o poema, a menina deformada tinha estranhas penas afiadas saindo de suas feridas, que não pareciam mais feridas e sim minúsculas bocas. Ela era um monstro muito mais chamativo que qualquer outro de sua espécie, era o que Dionísio sabia; sabia que beberia sangue não por prazer e divertimento, como gostavam de fazer todos os Vultos, mas por necessidade, um desejo quase sexual, tão grande quanto a necessidade dos outros Vultos de devorar segredos e emoções alheias … vontade que Ananke também imporia aos mortais, como qualquer outro vampiro. Ela era um monstro e era maravilhosa, Dionísio e os outros dois sentiam algo próximo do amor, que logo se desfez, quando ela falou numa voz mais composta: “Como há séculos, somos uma ninhada mais uma vez. Ele nos despertou e ele pagará por isso. Vá, corra agora, perca suas esperanças pelas ruas sem fim da cidade, pequeno Dionísio, e vai encontrá-las nas formas belas e cruéis de sua Lívia. Vá agora … AGORA!”



Havia uma sensação de perda no ar quando Dionísio saiu do quarto, era como andar novamente pelas vielas do paralelo, não tinha mais noção de tempo e espaço, de alguma forma, havia uma força oculta e forte que o guiava naquela dimensão sombria.

À sua frente um emaranhado de escadarias que subiam e desciam, uma densa névoa pairava naquele lugar, estava ficando cada vez mais confuso. “Mas que diabos!...” Dionísio mal acabou de pronunciar as palavras e foi sugado por um redemoinho saindo novamente no banheiro daquele bar de estrada.

Com as mãos trêmulas apoiadas na pia ele aos poucos foi recuperando o equilíbrio, olhou para o espelho e viu sua imagem borrada, logo acima um letreiro em Neon piscava, algumas luzes estavam queimadas, ele apertou os olhos para tentar firmar a visão e ler, aos poucos as letras foram ficando nítidas e então uma frase” Bar RAVEN LAKE” , esse nome soou estranho e familiar dentro de sua cabeça mas então percebeu as luzes queimadas e leu novamente “Bar Craven Clarke”

“Estranho…” Sua voz soou com um misto de dúvida e curiosidade.

O som que vinha da pista de dança do bar estava alto e agitado, o que significava que era noite, e por algum motivo ele sentia que estava prestes a encontrar o seu destino. Dois caras bêbados entraram no banheiro gargalhando, mas nem notaram Dionísio, falavam muito e riam demais. Dionísio manteve-se imóvel próximo à pia, sabia que eles não poderiam vê-lo, mas algo aconteceu, um dos rapazes esbarrou em Dionísio e logo depois dirigiu à ele um palavrão, o outro riu e comentou:

“Ih, esse cara aí deve estar muito louco, olha só os olhos dele…”

Saíram rindo do banheiro, Dionísio, ainda incrédulo, olhou seus olhos no espelho, o verde havia se transformado num vermelho vibrante, talvez fosse o contato direto com aquela película paralela na qual se encontrava. Respirou fundo e saiu do banheiro, a multidão e o som alto o deixava enraivecido, odiava aquela aglomeração humana nojenta, mas precisava encontrá-la, precisava de Lívia.

* * *


Quando Lívia saiu do banheiro, Caio correu atrás dela mas não conseguiu alcançá-la, viu quando Vanessa do outro lado do salão levantou-se com as mãos na cintura, apontando para o meio da pista de dança. Lívia dançava sensualmente ao som de Killing Moon, do Echo & The Bunnymen , Caio correu até a mesa onde estavam os amigos.

“E agora pessoal? O que vamos fazer?”

Nesse instante Dionísio viu Lívia, uma sensação de estranho conforto o invadiu, foi caminhando lentamente até ela, olhos fixos nas curvas marcantes do corpo da garota, quando chegou ao seu lado a música acabou, Lívia se virou e então os olhos dos dois se cruzaram, neste instante começava a tocar Mad World, de Gary Jules & Michael Andrews, o que indicava um pequeno intervalo para que as pessoas ali pudessem recuperar suas energias para a próxima seleção dançante, mas Lívia e Dionísio permaneceram na pista, olhos nos olhos, nenhum movimento brusco, foi Lívia quem quebrou o silêncio.

“Estava esperando por você...”

Dionísio sorriu, pegou-a pela cintura e então com seus corpos grudados dançaram,era como se nada mais ali existisse.

Vanessa estava fora de si juntou suas coisas e correu para tirar Lívia de lá antes que fizesse algo do qual se arrependesse, ela sabia que havia algo de muito errado, só não sabia o que era.

Dionísio aproximou seus lábios dos de Lívia, que fechou os olhos numa demonstração de entrega, ele a apertou forte em seus braços e a beijou profundamente, mas não era um beijo comum, ele estava sugando sua vida, um breve sorriso se fez nos lábios da garota, então seus braços penderam soltos ao lado do corpo, a cabeça lentamente caiu para trás e Dionísio a colocou no chão de forma delicada, acariciou seu rosto uma ultima vez.

“Obrigado, minha pequena.”

Enquanto Vanessa e os amigos corriam na direção dos dois depois do que viram, Dionísio saiu andando pela porta, lá fora encontrou um casal que acabava de chegar num carro preto esportivo, chegou bem próximo ao rapaz e ao olhar fundo em seus olhos ele lhe entregou as chaves, Dionísio entrou e preparava-se para partir quando Caio e Tiago apareceram na porta, correram até Dionísio gritando.

“Maldito assassino! Nós vamos te pegar.”

Dionísio acelerou e entrou na pista, Caio e Tiago pegaram o carro e começaram a persegui-lo, estavam muito rápidos, de vez em quando precisavam frear bruscamente por causa de algum carro que vinha na pista contrária, logo à frente, numa curva fechada, um caminhão que vinha na outra pista não conseguiu frear a tempo, o carro em que Caio e Tiago estavam rodopiou várias vezes, batendo na traseira do carro de Dionísio, que foi jogado contra uma árvore, logo em seguida o outro carro também bateu na mesma árvore e uma enorme explosão iluminou toda aquela área, na pista o caminhão tombava se arrastando por vários metros, deixando uma imensa mancha de óleo.

Dionísio saiu do meio das chamas, sua pele levemente queimada, andou alguns metros no matagal e então encontrou uma enorme poça de lama onde cavou e satisfeito por ter conseguido o que queria, se enterrou profundamente, fechou os olhos num misto de dor e prazer, era hora de descansar, havia muito o que fazer ainda naquela cidade.

Belin e Belial estavam parados a poucos metros de onde o acidente havia acontecido, ela olhou para Belial num tom meio desconfiado.

“Você acha que ele percebeu algo?”

“Não creio. Mas só teremos certeza quando chegar a hora certa.”

Belin abraçou-se à Belial, sentia-se protegida junto dele, mas tinha medo do que ele era capaz para ter o que queria.

As duas sombras Vulpinas sumiram em meio a uma densa neblina.















Trechos deste conto na fonte GEORGIA foram escritos por Neith WarTrechos deste conto na fonte ARIAL foram escritos por The Grey Knight (Arthur Ferreira Jr.'.)

Um comentário:

  1. Publicado originalmente em
    http://insanemission.blogspot.com/2011/01/misterios-do-horizonte.html

    IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, AUTORES E FONTES

    1
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/los_angeles_como_voce_nunca_viu/
    Los Angeles de Brian Parillo

    2
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/os_zodiaco_de_andreas_preis/
    SAGITÁRIO
    Andreas Preis

    3
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/fosseis_modernos/
    Asportatio Acromatis
    Christopher Locke

    4
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/alfabeto_em_tres_dimensoes/
    Uma heterose de Brian Banton

    5 e
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/manequins_morbidos/
    Exposição Mannequim
    Jerome Abramovitch

    6
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/mundo_imaginario_em_light_painting/
    Darren Pearson ou Darius Twin, uma Light Painting

    7
    [Imagem perdida; quem souber a fonte, me avise; vou pesquisar]

    8
    [idem; Google Imagens]

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