sexta-feira, 30 de setembro de 2011

EXPOSTA


De Arthur Ferreira Jr.'.
Para a voz e a visão de Charlene


Respirava fundo e se sentia exposta.
Entre as duas placas de vidro, transparentes como uma alma que se acha sincera.


Toda uma carga de opostos se dissolvia naquele corredor estreito, onde ela despia suas máscaras e cantava Matanza, bem alto, quase destruindo a fragilidade dos vidro que a separavam das salas onde trabalhava.  Aquele lugar era como o afunilado de uma ampulheta: o tempo parava, e ela gritava.

Mesmo que fosse só na mente que se revoltava do seu próprio silêncio numa das salas, e das palavras vazias na outra.

Aquele lugar era um estado de espírito, era como sua cintura, unindo quadris que se acham livres e torso que se acha escondido demais naquele momento.


Mas não adiantava ficar por ali muito tempo, e ela se movia: o corredor era fugaz e o vidro era translúcido.

Um dia aquele prédio será todo como o corredor: e seu canto e grito e gargalhada dominará o ambiente; e seremos todos mais felizes.





ESTACA DE AMOR

por Desdêmona 


O Amor é uma estaca da madeira da Árvore do Conhecimento
Do Bem e do Mal, que me empala o coração de maçã,
Abrindo-me os olhos para as ilusões do desejo.
Faz-me sangrar de dor e prazer, faz-me chorar de   ciúme e saudade,
Com o coração a chorar e os olhos a sangrar.


Retirar a fatídica estaca do coração aflito somente
O faz ficar vazio, sequioso da plenitude que apenas
O Amor pode oferecer. Valeria mesmo a pena rechear
A ferida com o fluido empestado do Ódio,
Que me invariavelmente domina após a partida do Amor?


Assaz imperiosa a transposição das barreiras entre o Amor
E o Ódio; assaz necessária a alquímica fusão dos opostos.
A gangrena hedionda do ódio me infecciona o peito,
Escandalizando-me; como o Cristo assim recomendou,
Corto-o fora! E no monte de esterco ficará o coração abandonado.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O PRINCÍPIO DAS SOMBRAS

Por NEITH WAR e THE GREY KNIGHT
The Grey Knight é um pseudônimo/heterônimo de Arthur Ferreira Jr.'.




Nada naquela cidade parecia real, com seus prédios antigos e suas casas rústicas, os habitantes sentiam-se dentro de um filme antigo. A casa de Belin não era diferente, um sobrado com detalhes de flores e ramos por toda a lateral, as grades das enormes janelas faziam desenhos sinuosos que as deixavam ainda mais bonitas. Do alpendre podia-se ver toda uma vasta floresta que sumia no horizonte.

Belin era uma garota de 23 anos, alta de longos cabelos lisos e pretos, vivia sozinha desde os 17 quando perdeu seus pais, gostava de estudar sobre magia e ocultismo e sentia grande afinidade com os animais, mas não era chegada a fazer amizade com as pessoas da cidade.

Sentada na varanda da casa, Belin fazia algumas anotações em seu diário de sonhos, sabia que era importante anotar, e sentia que algo estava para acontecer, o sonho da noite passada havia sido assustador, não entendia o porquê, mas tinha a sensação de que estava sendo vigiada há algum tempo, e isso a incomodava demais.

Caminhando devagar, uma figura se aproximava à distância. Contornava com passos firmes e prudentes a orla da floresta escura próxima à casa de Belin, e os olhos da moça se ergueram de seu diário para tentar identificar quem era que se aproximava: mais um dos seus vizinhos que tentava puxar alguma conversa, sem motivo algum?

Pelo menos dois haviam tentado, nos últimos sete dias. Só que não era o caso: um moço de barba negra, cuidadosamente aparada, óculos pendurados na testa, olhos azul-escuros, se aproximava. Belin não se lembrava de ter visto alguém assim na cidade, nem se parecia com o tipo de homem que vivia naquela cidadezinha: roupas como as de alguém que fosse para a balada numa cidade grande, calça muito negra, camisa vermelha aberta até a metade do peito. Um grande medalhão metálico, de uma cor aparentada ao azul-cobalto, mas ainda mais escura.

E trazia uma sacola na mão, dela tirando algo, ou pelo menos fazendo menção disso. Belin se levantou no alpendre da casa, e o estranho sorriu, a exatos quarenta passos de distância.

Seu coração batia descompassadamente, a respiração estava forte e ofegante, tinha vontade de correr para dentro de casa mas suas pernas não obedeciam. Não conseguia parar de encará-lo, era como se aqueles olhos azuis a tivesse hipnotizado. Um sentimento de pânico tomou conta de sua alma quando de repente uma sombra desajeitada parou bem à sua frente.

– Ei, que cara é essa, viu um fantasma? – André, o intrometido, era assim que Belin chamava aquele chato de 24 anos que parecia não se cansar de chateá-la com sua presença, o vizinho mais insuportável que já tivera, intrometido e sem noção.

Desviou o olhar tentando enxergar o homem que antes via, mas nada viu, simplesmente havia desaparecido: alívio e desapontamento eram os sentimentos que lutavam dentro dela naquele instante. Talvez quisesse a aproximação com o desconhecido, mas agora parecia mais com uma visão criada por sua mente cansada já que não dormira direito na noite anterior.

– O que faz aqui, André? Já não te disse para não invadir meu espaço desta forma? – Belin disse isso enquanto juntava suas coisas e entrava na cozinha.

– Me desculpe, gata, mas é que como você nunca aceita meus convites para sair, sou obrigado a vir aqui, para que você tenha a oportunidade de desfrutar de minha adorável presença – sentou-se numa, cadeira sorrindo.

– Que idiota … – pensou Belin.

– Pois deveria dar a honra a outras garotas que realmente estejam afim – Belin estava cansada, não conseguia parar de pensar no "estranho" rapaz que vira. Pegou uma chaleira e colocou água para ferver.

– Cuidado com o que diz, gatinha, você pode acabar me cansando e me perder, existem muitas garotas que gostariam de ter a sua sorte – André se aproximou e tentou abraçar Belin, que o afastou asperamente.

– Melhor você ir embora, não estou afim de conversar, saia já de minha casa ou … – disse enquanto abria a porta para que André saísse.

– Ou o quê? Olha garota, só vou embora porque tenho um encontro, mas amanhã volto para conversarmos direito – disse isso enquanto saía pela porta.

– Inacreditável … – sussurrou Belin.

Enquanto André se afastava a garota trancou bem a porta a fim de não ter surpresas, afinal podia-se esperar tudo daquele imbecil do André.

A chaleira apitou, e Belin colocou a água fervente numa xícara que já esperava com o sachê de erva cidreira dentro, adoçou e subiu as escadas indo direto para o banheiro. Da janela do cômodo podia-se ver perfeitamente o pôr do sol: quando seus raios passavam pela veneziana formavam um arco-íris na parede que deixava o lugar com cara de mágico, encheu a banheira e enquanto tomava alguns goles de chá foi despindo-se.

O homem não saía de sua mente, tinha certeza de que não era alucinação. O que ele teria feito? O que ele queria dela? Seria um ladrão? Não, definitivamente não podia ser.

Entrou na água morna e encostou a cabeça na borda da banheira onde colocou uma toalha para ficar mais macio. Fechou os olhos, sua respiração estava cada vez mais profunda e pausada, o sol já havia se posto de vez e um ventinho frio soprava vindo da floresta e trazendo um delicioso aroma de eucaliptos. Já estava quase dormindo, gostava de relaxar no banho, era a única hora em que realmente podia descansar de verdade, antes de partir em viagem ao mundo dos sonhos sussurrou para si mesma:

– Aqueles olhos...





Enquanto subia as escadas, uma sombra se esgueirava pela parte de trás da casa. A conversa da garota Belin, pensava a sombra, havia lhe interessado. Como ela conseguira lhe enxergar mais cedo, enquanto rodeava a orla da antiga floresta, também era outra coisa que fez a sombra pensar se, mesmo tendo fugido para aquele fim de mundo, havia alguém que se parecesse com ele, a sombra.

A aproximação do rapaz lhe havia dado a distração necessária para impor sua vontade e sumir do campo de visão da moça. E agora o sombra era só uma sombra mesmo, parcamente visível enquanto penetrava pelas frestas da casa e se aproximava do banheiro onde Belin começava a adormecer...

Dois olhos azuis brilharam na forma sombria, e algo parecido com um sorriso escarlate se desenhou em sua forma vagamente humana.

Belin havia dado uma forma humana a ele, sombra. Ele só podia imaginar que essa forma havia sido tirada dos sonhos dela, e onde mais procurar saber mais sobre a moça, senão nos sonhos dela? Assim que a menina, nua e quase totalmente imersa na banheira, começou a ressonar, suavemente, com ainda mais suavidade, mas uma firmeza incomum, a sombra penetrou nos sonhos de Belin.



Belin encontrava-se no mundo dos sonhos, coberta pela escuridão do cenário que conhecia tão bem. Andava apressada pelas ruas úmidas daquela cidade em ruínas, de vez em quando escutava um grito vindo de algum canto sombrio.

Seguia com passos apressados com medo de estar sendo seguida ou vigiada, ao chegar perto de grandes portões de ferro que davam entrada à uma imensa mansão que mais parecia uma cripta, Belin parou para descansar, olhou sua mãos e percebeu que estavam quase transparentes, murmurou:

– Oh não...não vai dar tempo...

Empurrou com grande dificuldade os imensos portões, e adentrou o gigantesco jardim de flores mortas que tomava toda a frente da mansão. Chegando a porta parou novamente para tomar fôlego, ao olhar para a escura rua percebeu um vulto que a seguia.

Sentiu um gelo no estômago e imediatamente empurrou a porta e entrou. Móveis antigos e empoeirados, quadros estranhos e grossas cortinas deixavam o lugar escuro e com cheiro de mofo.

Subiu correndo as escadas quando percebeu que a porta da frente se abria, correu o mais rápido que pôde e entrou num dos enormes quartos, trancou a porta encostando um pesado criado mudo e se aproximou de um imenso espelho oval que estava próximo à janela coberto por um pano preto.

Barulhos nas escadas fizeram com que seu coração disparasse, tirou o pano e notou que estava ainda mais transparente do que antes.

– Faça dar tempo desta vez … por favor – disse isso enquanto segurava um amuleto que trazia no pescoço.

Uma luz se ascendeu na memória e tudo ao seu redor começou a mudar, alguém forçava a maçaneta tentando empurrar o móvel que segurava a porta, sentiu um gelo no estômago e um sufoco, um clarão e tudo ficou negro como a noite.

Belin se agitou na banheira e acordou assustada quase se afogando, respiração ofegante, tossia muito, estava com medo, poderia ter morrido. Levantou-se rapidamente e saiu do banheiro indo direto para o quarto, trocou-se e ficou encolhida na cama enquanto a cena não parava de se repetir em sua cabeça, apenas uma pergunta sem resposta:

– Quem poderia ter me seguido? Quem saberia deste lugar?

Dormiu sentindo um aperto no coração.



Era uma presença palpável no vácuo, um paradoxo em forma de sombra. Ele era desejo e negação numa só … coisa. Ser. Ou quase um ser, porque estava muito próximo do não-ser.

Só que Belin o havia trazido mais próximo do ser.

E ele estava adorando.

Alguma coisa na moça era similar a ele, não era como se ela fosse uma presa habitual. Era mais como se ela fosse um exemplar de sua raça; mas como, se vivia no mundo da carne? Cada vez mais próximo de uma consistência que Belin chamaria de real, a
sombra decidiu dar um nome a si mesmo. A partir daquele momento, em que a menina se encolhia na cama, tremendo, ele se chamaria Belial.

Era um nome largado nas memórias da menina que começava a ressonar. Não tinha importância seu significado, ou qualquer que fosse o contato ou relevância do nome Belial para Belin. Ele só achou o nome solto nas memórias, avaliou ser parecido
com o nome que a moça dizia ter, e, baseado em seus próprios sentimentos que borbulhavam como uma poça de óleo fervente, decidiu-se num instante.

Belial então aproximou-se mais de Belin. Era estranho: a menina ressonava, e ele sentia a própria respiração ao chegar mais perto dela. O caso é que nunca havia
respirado de fato antes. De alguma forma obscura, Belin havia lhe dado a própria respiração. Talvez por isto estivesse meio sem fôlego agora. Refletindo um pouco, Belial achou que isso significava estar mais próximo de estar vivo.

E, consequentemente, mais fraco.

Era uma bela cama de casal e Belial se sentou ao lado de Belin. Percebeu que seu corpo era agora idêntico ao que Belin devia ter enxergado, na estrada próxima da casa. O quão palpável seria sua própria carne, agora?

Bom, não custava tentar... e tentar era o que Belial tinha feito na maior parte dos milênios que ele achava ter existido.


Abriu os olhos e sentiu um desconforto ao perceber que pela janela escancarada um sol ardente entrava atingindo-a em cheio.

Belin se levantou resmungando, odiava quando esquecia de fechar as cortinas antes de dormir, a claridade da manhã a incomodava mais do que qualquer coisa que conhecia. Foi até o banheiro e lavou o rosto dando uma boa olhada na vermelhidão de seus olhos, isso sempre acontecia quando eram expostos à claridade imediata do sol. Colocou um vestido azul de verão e depois de pentear-se desceu as escadas pensativa, sabia que alguém a havia seguido quando esteve em Raven Lake, a cidade dos sonhos, e de certa forma sentia que poderia ser o mesmo homem que viu na tarde anterior.

Abriu a porta que dava acesso à varanda e espreguiçou-se sentindo o aroma delicado das flores de seu jardim, foi interrompida por um grunhido que a deixou de mau humor na hora.

– Bommm diaaaa gatinha!!

Era André que se aproximava com aquele ar petulante que Belin odiava. Respondeu com má vontade.

– Bom dia … – sentou-se na cadeira e fechou os olhos procurando dentro de sua mente, no meio das lembranças, o rosto do misterioso homem.

– Ihhh, já vi que está de mau humor, o que foi? Está chateada por ontem eu não ter ficado aqui com você?

A pergunta de André foi tão natural que Belin não conseguiu segurar uma gargalhada; que André detestou, por sinal.

– Olha Belin, você pode me considerar um idiota e rir de minha cara, mas saiba que você já está passando da idade e logo vai ficar para titia; afinal pelo que sei você não tem muitos pretendentes, vai ficar sozinha e morrer sozinha e vai se arrepender de me esnobar desta forma.

Belin abriu os olhos e ficou a fitar a floresta no horizonte, sentiu saudades de seus pais, pensou na forma idiota como haviam morrido, acidente de carro...e tudo por culpa de um motorista bêbado. Desde então estava mesmo sozinha, não tinha irmãos, não tinha amigos, não tinha nada, somente André que volta e meia aparecia para provocá-la. Sabia que ele também não tinha tantos encontros como dizia, a mãe dele era uma louca que o tratava como a um bebê, ontem quando ele disse que tinha de ir embora porque teria um encontro Belin sabia muito bem que era porque a mãe de André gostava de assistir a série de TV sentada junto do filho, Dona Eleonora era uma viúva bonita mas dependente do filho, nesse ponto Belin sabia que André era um bom rapaz, nunca deixava a mãe sozinha por muito tempo e era sempre carinhoso com ela, nesse ponto dos pensamentos Belin sorriu e segurou a mão de André.

André espantou-se com a iniciativa de Belin mas ficou calado para não estragar o momento.

Os pensamentos cessaram, Belin mantinha os olhos no horizonte, cenas estranhas passavam diante de seus olhos como se as vissem em um telão, via uma sombra que se aproximava com extrema rapidez, não conseguia se mexer, o corpo estava enrijecido, sem se dar conta começara a apertar com força a mão de André que preocupou-se e chamava pela garota que nada ouvia, estava num outro plano, a sombra bestial se aproximava cada vez mais, Belin cravara as unhas na mãos de André que desesperado chacoalhava a menina pelos ombros, finalmente a sombra chegou bem perto e com seus olhos azuis faiscando sussurrou seu nome "Belial...", que a garota recebeu com um impacto tão forte que quase desmaiou.

Acordou do transe gritando por Belial, seus olhos cintilaram e mudaram para uma cor púrpura voltando ao normal logo depois. Viu a cara de pavor de André que preocupado tentava entender o que estava acontecendo. Belin viu a mão do rapaz sangrando e se sentiu péssima por isso.

– André...me desculpe, eu...

– Ei, gata, não importa, o que houve com você? – o rapaz disfarçava o espanto de ter visto os olhos de Belin transformarem-se.

– Não sei … – Belin parecia se perder novamente em seus pensamentos.

– Acho melhor você entrar, e deitar um pouco, gatinha.

– É … talvez …

– Venha.

André levou a garota até o quarto, deitou-a na cama e fechou as cortinas para que o quarto ficasse na penumbra.

– Eu vou até em casa dar um jeito em minha mão; mas volto logo para ver como você está.

Belin não respondeu, André saiu e então a casa toda pareceu mergulhar numa profunda escuridão. Ao longe negras nuvens anunciavam um temporal, o vento aumentava fazendo com que as janelas produzissem um som fantasmagórico.

Do canto do quarto Belin viu surgir um vulto que se aproximava de sua cama, seu coração disparou, mas não era medo, um sentimento de reencontro, murmurou:

– Belial …

A sombra abraçou Belin e juntos atravessaram os portais do paralelo.


André deixou a porta do quarto de Belin entreaberta, e saiu apressado na direção da rua. Um trovão ribombou lá fora, o que fez o rapaz correr para evitar a tempestade que com certeza iria cair. Se era só o primeiro trovão – todo aquele acidente, ou incidente que resultara em sua mão sangrando podia tê-lo feito ignorar outros sinais de temporal lá fora – dava tempo para chegar em sua própria casa, mas ele precisava ser rápido.

Mal atravessou a soleira da porta e percebeu como havia ficado escuro: as nuvens negras tomavam o céu, praticamente esmagavam o horizonte: por um minuto André ficou espantado, era como se o céu fosse … pesado. Como era possível uma sensação de peso tão forte lhe atingir os olhos??

Talvez estivesse ficando doido, que nem a Belin: ele sabia que ela era meio esquisita, embora fizesse muito o seu tipo, uma gatinha que ainda se mostrava manhosa, mas aquilo havia sido meio exagerado. André voltou a correr mas a tempestade lhe alcançou antes de chegar em casa. O sangue que lhe escorria pela mão se misturava com a água que caía do céu, numa fúria repentina por mais esperada que fosse.

Mas estava perto. Chegou diante da casa de sua mãe, e pouco antes de entrar tomou um susto terrível que o fez estacar no meio da chuva: o trovão rugiu nos céus, e um raio faiscante caiu em cima da casa. Um clarão veio do interior da casa, e apesar do perigo André não chegou a hesitar muito: sua mãe devia estar lá dentro!

Entrou esbaforido, olhando para todos os lados: aparentemente, o para-raios havia contido a força do relâmpago. Mas a casa estava às escuras, ou quase: a eletricidade fora cortada pela tempestade, e várias velas estavam espalhadas pela casa.

… Porquê?, se perguntou André? Ela já estava esperando isto?...

Uma bela e madura mulher acariciava a tela da televisão, seus cabelos muito negros, sem um só fio branco que denunciasse sua idade e fragilidade emocional, se mexiam ao sabor do vento que entrava pela janela escancarada.

André entrou rápido e fechou a janela:

– Mãe? O que é isso tudo? Porque deixou essa janela aberta?

– A previsão do tempo, meu filho André... a previsão!!! – ela respondeu numa voz numa tonalidade um pouco acima do normal, e virou-se para o filho (estava até então de costas). Seus olhos estavam um pouco lacrimejantes, ou era respingo da chuva que vinha lá fora? Ela se aproximou a passos firmes, um tanto diferente do jeito vacilante da Eleonora, sua mãe, que ele conhecia, e segurou o pulso do rapaz, dizendo naquela voz meio alterada:

– Oh, meu filho André. Quem fez isso com você?!?

Ao toque de sua mãe, que lhe deveria ser muito familiar, André levou um pequeno... choque, como duas pessoas desconhecidas que se tocam sem querer pelo cotovelo, no escuro do cinema. A ferida que até então estava limpa pela chuva voltou a sangrar, desta vez mais profusamente que antes.

– Você quer que eu cuide disso, meu filho André? Ou quer que eu cuide de quem fez isso com você?... – Eleonora tomou do braço de André e o aproximou dos próprios lábios, num gesto inesperado. O rapaz teve a impressão de que ela ia esticar a língua da boca já entreaberta e lamber o ferimento que sangrava, mas antes outro relâmpago lá fora iluminou a sala em penumbra e André pôde vislumbrar um fugaz brilho púrpura nos olhos de sua mãe.

Surpreso, André puxou o braço quase que com ferocidade, e por um instante terrível percebeu como a força das mãos de Eleonora era bem maior do que costumava ser, quase ao mesmo tempo em que percebeu que as dezessete chamas das velas espalhadas pelo cômodo não haviam apagado, ou sequer dançado, com a rajada de vento que (não tinha fechado a janela??) penetrou na sala.

Que é que estava acontecendo?




Belin sentiu seu corpo estremecer e parecia pairar no ar, não via nem ouvia nada, um profundo silêncio tomava conta de tudo. De repente um estrondo e Belin viu-se sentada numa cadeira na mansão em Raven Lake.

Olhou ao redor e nada viu, à sua frente o imenso espelho oval estava descoberto, mas não refletia absolutamente nada, apenas um escuro espectral em seu interior, parecia um poço sem fundo.

Tentou se levantar, mas não conseguia se mexer.

– Olá...tem alguém aí? – Belin gritava em vão.

De repente um ruído parecido com o de trovões veio de dentro do espelho, estava cada vez mais perto, o coração da garota começou a acelerar, sentia medo e excitação, sempre quis entrar naquele espelho para saber aonde daria, mas agora estava prestes a ver o que sairia de dentro dele.

As cortinas do aposento começaram a balançar e tudo ao redor parecia em movimento, o som se aproximava e com ele passos pesados. Belin não conseguiu continuar olhando e fechou os olhos apertando os dedos contra o braço da cadeira.

Sentiu quando uma mão firme pousou sobre seu ombro, um arrepio percorreu todo seu corpo e fez com que sua respiração ficasse pesada. Não quis se mexer, teve medo...pela primeira vez teve medo...

– Belin … – com com voz firme o o vulto negro sussurrou próximo à orelha da garota. Ela sentiu aquele hálito quente percorrer seu pescoço e entrar em suas roupas. Afrouxou os dedos tirando uma das mãos do braço da cadeira e pousando-a sobre a mão que estava sob seu ombro, aquele toque parecia feito de energia, uma densa energia que fez o corpo da garota estremecer. Criou coragem e abriu os olhos, ao olhar para o espelho via-se refletida nele, mas nada mais que isso, embora ainda sentisse a mão que segurava. Levantou-se de um salto e virou-se para trás, seus olhos brilharam quando o viu, não pôde descrever a sensação, foi algo tão forte e irreal que não acreditava nos sentimentos que estavam sendo despertos um a um.

Aproximou-se, sabia o nome daquele ser tão lindo que via a sua frente.

– Belial … – seus olhos brilharam uma luz púrpura enquanto tocava o corpo daquele homem que se assemelhava a um demônio que a fascinava de um modo quase doentio.
Abraçou-o enquanto inspirava profundamente, aquele cheiro...era como voltar para casa depois de longos anos viajando por diferentes mundos. Olhou para aquele rosto tão familiar, acariciou-o e sem mais esperar beijou seus lábios.

Tudo ao redor parecia não mais existir, havia um profundo silêncio naquele momento.
As mãos de Belial percorreram o corpo de Belin, explorando-o minuciosamente.
Tiraram suas roupas sem pararem de se beijar, o desejo que se apossou deles naquele momento era tão forte que um precisava desesperadamente do outro.

Seus corpos nus começaram a se refletir naquele espelho negro, já não estavam mais no quarto, estavam dentro do espelho oval, na profunda escuridão. Belial beijava o pescoço da garota, suas mãos tocavam aqueles seios firmes que pediam, enrijecidos, por sua boca. Entregavam-se um ao outro de forma completa e intensa, uma deliciosa sensação de euforia e êxtase, a escuridão estava impregnada de desejos.

Belial deitou a garota no chão e penetrou Belin de forma abrupta, a garota foi levada ao prazer extremo, seus gemidos ecoavam pela escuridão, estava fascinada por aquele Ser demoníaco que a possuía por completo.

Seus corpos unidos eram como mil sóis aquecendo o mundo, uma deliciosa fragrância de sândalo impregnava o ar, eram Dois e eram Um...

Belial prendeu os braços de Belin para cima e continuava mexendo seu corpo num vai e vem frenético, Belin colocou as pernas ao redor da cintura dele e apertou, sentia que poderia morrer naquele momento, nada mais importava, só estar com ele.

Num urro assemelhado à trovões Belial chegou ao seu êxtase no mesmo instante em que Belin também chegou, foi uma explosão de sensações e gozos.

Belin sentiu que não conseguiria mais manter a lucidez e antes que seus olhos se fechassem acariciou uma ultima vez o rosto daquele Ser a quem tanto amava, sim, era este o sentimento, amor...

Quando Belin abriu novamente os olhos estava em sua cama, as cortinas balançavam ferozmente enquanto uma tempestade funesta desabava lá fora.



“E caiu a chuva, e transbordaram os rios, e sopraram os ventos, e se precipitaram sobre aquela casa … e ela caiu … e foi grande a sua ruína.”

A frase veio como um clarão sobre a mente de André, e um calafrio correu por sua espinha como um relâmpago escorrega ligeiro pelo céu. Eram palavras do Sermão da Montanha – mas porque lhe viria a cabeça uma citação bíblica, se ele não era crente nem nada, aliás, nem ele nem sua mãe eram de fato religiosos. E, sendo assim, porque as velas espalhadas pela casa daquele jeito … daquele jeito ritualístico, era a única palavra plausível?

O padrão das dezessete (eram dezessete, exatamente dezessete, e ele contara as velas num só relance, uma percepção quase dolorosa) velas parecia deixá-lo tonto. A mão daquela que um dia fora sua mãe, mas não era mais (outra percepção ainda mais dolorosa: esta lhe marretava a base do crânio e ardia o pulso a sangrar), ainda segurava-lhe o pulso. A luz púrpura nos olhos de … não era mais Eleonora … olhou diretamente para André e ela sorriu, um ar que misturava constrangimento e avidez:

– Mas o que é isso, meu filho André? Me deixe aplacar seu sofrimento … e que aqueles que te feriram assim tenham a dor multiplicada por dez – este modo de falar nunca fora do feitio de Eleonora. Se não estava já em pânico, André teve total certeza de que era prisioneiro absoluto do medo.

 Pare. Pare. Não sei quem é você, o que é você, mas saia de dentro de minha mãe!! – a frase lhe soou ridícula, um clichê, logo após tê-la gritado. Deve ter soado ridículo também aos olhos da invasora, porque esta sorriu de jeito ainda mais perturbador, quase anormal, como se estivesse olhando para um bichinho ou uma criança ignorante, e lhe respondeu:

 Seu bobo. Você é meu filho André, e eu sou sua mãe. Serei sua mãe para todo o sempre a partir de agora, e este meu corpo o prova. Não me olhas e vê tua mãe …? Não foram estes os seios que te amamentaram? … – e puxou a mão de André direto para os seios que eram visíveis em parte pela blusa um tanto desabotoada, em parte pela água da chuva que lhe caíra em cima do tecido branco. O calor do corpo da mãe se misturava a um calor inumano que vinha da entidade que a possuía, e que contrastava muito com a frieza da mão que lhe segurava o pulso. Era como se um coração em chamas pulsasse dentro daquele peito … não, dentro daqueles seios. Era como se os dois seios estivessem em febre, um fogo milímetros abaixo da superfície da pele.

E como costumava fazer o fogo, aquele fogo seduzia. Assim como as labaredas do fogo podem hipnotizar quem as contempla, o calor do fogo também pode excitar e escravizar, e definitivamente era esse o caso do calor que passava daqueles seios duros (André nunca sentira antes os seios da mãe tão duros, não era aquilo que sentia nas vezes que a abraçava) para a mão ferida de André. Atordoado, ele sentiu a sua … nova mãe … soltar-lhe o pulso. E sua mão continuou a tocar-lhe os seios. Ele não se atreveu a tirar, inclusive porque a ferida no pulso começou a cicatrizar, cortesia e bênção daquele calor que emanava dos seios dela.

E, como seria inevitável, a outra mão agarrou-lhe os seios e André voluntariamente beijou os lábios de sua nova mãe. Havia perdido toda consciência do que achava que seria moral, do que seria apropriado – só havia o impulso, a urgência, a necessidade. A comichão que lhe passeava pelas veias. Esqueceu o ferimento que não mais existia. Esqueceu das trovoadas lá fora, do vento que soprava sobre os dois. Esqueceu das dezessete velas... Esqueceu de Belin.

Mas isto, aquela entidade que invadira o corpo de Eleonora não ia deixar. Aquela entidade sem nome, até agora. Seu nome não era Eleonora, e ela tirou seu novo nome da mente de André, o nome vinha borbulhando pelo sangue que ela sugava dos lábios do rapaz. André soube que era escravo, talvez para sempre, de Astarte.

Astarte interrompeu o beijo profundo e sangrento, lambeu devagar os lábios em meio a um gemido de satisfação – eram mais carnudos do que os lábios de sua mãe Eleonora costumava ser, mas André já estava esquecendo de Eleonora – e disse:

-- Essa Belin. Onde está ela? Não foi ela que sangrou teu lindo pulso, coisa que só eu poderia ter feito? Ahhh … não me responda. Só me leve até ela. Não sei porquê, mas desconfio que ela não é tão fraca como você … e deve estar com aquele que vim buscar, o fugitivo. Não que nada disso faça sentido para você, meu lindo fraco – André fitava os olhos púrpuras de Astarte, sem pestanejar e sem responder, porque ela havia mandado não responder – você gosta, não é? Delicia-se em ser fraco enquanto agarra meus seios, não é? … Certo. Você vai ter ainda muito tempo para desfrutar de sua fraqueza junto a este meu novo corpo, mas agora vai sentir prazer é em me obedecer: vamos, me leve até ela e àquele canalha ladrão que eu vislumbrei se escondendo em suas memórias. Você pode ser quase cego, mas eu, não …

André soltou os seios de Astarte e saiu andando, passou pela porta e enfrentou a chuva. Os raios e relâmpagos caíam fortes e o temporal parecia cada vez pior, mas ele e sua nova mãe andaram firmes, como se marchando, na direção da casa de Belin. E é claro, para todos aos outros da cidadezinha, escondidos com medo da tempestade, nada de anormal estava acontecendo.

Nada … Só a tempestade.



Belin levantou-se de um salto, correu até a janela para fechá-la e viu quando André retornava acompanhado … da mãe?

Não acreditou em seus olhos quando a viu, Belin a via, da forma exata como era, seu coração disparou enquanto sussurrava: A Mãe …

Correu pelas escadas quase voando, e fugiu pela porta da cozinha, correu descalça pela relva gélida enquanto os raios cortavam os céus violentamente, mal conseguia enxergar por causa da chuva forte, correu o máximo que conseguiu e adentrou a escura e úmida floresta.

Dentro da casa Belial esperava pela Mãe com um sorriso malicioso nos lábios, do alto da escada olhava firme na direção da porta da frente, ansioso pelo esperado encontro.

Belin tinha os pés feridos, descalça corria sem parar, já nem sabia o porquê da fuga, não conseguia pensar direito, atravessou todo o bosque e parou à beira de um enorme precipício, ficou ali, como uma estátua olhando o nada, como se esperasse alguma ordem, a chuva lavava seu corpo e os trovões que faziam a terra estremecer não lhe causavam um só suspiro.

Seus olhos … os olhos de Belial … Belin e Belial, ela via através de seus olhos, ele via através dos olhos dela, ela ouvia e sentia através de Belial, ele sentia a chuva gelada na pele de Belin, podia ver o precipício podia sentir o cheiro da terra molhada, eles eram Um.


Cada passo daquela dança milimetricamente coreografada, a dança da Realidade movendo-se contra o Vazio. A dança de Belin, Belial, Astarte e até do pobre André, seus movimentos descritos neste conto, eram uma celebração ritual inconsciente, forçosa, obrigatória, que imitava os padrões rítmicos dessa dança primal da Realidade fluindo contra o pano de fundo do Vazio.

Belial sabia algo que Astarte não sabia. Esse algo – uma coisa tão indescritivelmente complexa que se nós, narrador e narradora deste conto, fôssemos passar adiante a vocês leitores, simplesmente os fariam passar o resto de suas vidas mortais lendo esta tortuosa narrativa – era aquilo que Belial roubara, e era aquilo que Astarte queria de volta. Se Belial sabia, Astarte não teria como saber, apenas porque Belial roubara o … Mistério, é melhor chamar esse algo por um nome menos indefinido e que não roube uma lemniscata de palavras nesta história apenas para ser descrito. Se roubara, o dono original não poderia ter mais acesso.

Parece algo tolo, não muito aplicável a um Mistério, algo que pode ser passado adiante sem que quem o pronuncie não o perca, mas era essa a natureza tanto do Mistério quanto das duas entidades que eram Astarte e Belial. Só posso talvez adiantar que esse Mistério tem algo a ver com a dança primal vivida por eles dois, André e Belin. E Belin agora ouvia a música que impulsionava essa dança: a tempestade que trovejava enquanto ela contemplava o precipício à sua frente.

E quando o precipício era assim observado por Belin assombrada e petrificada, André já não mais existia como o conhecemos no começo deste conto. E enquanto Belin corria desesperada pelo bosque, sem compreender a razão de tudo aquilo, uma armadilha era disparada, um corpo era tomado.

A arrogância muitas vezes é apenas o primeiro acorde de um réquiem, um prenúncio de queda: e foi isso que aconteceu com Astarte. Uma série de pequenas decisões erradas, movidas pela arrogância, levou A Mãe a ostentar seu brinquedinho André pelas ruas da cidade, a entrar na casa de Belin com o “filho” a seu lado. A porta estava destrancada, mas mesmo se não estivesse, é possível que Astarte a houvesse derrubado com a força estranha de seus braços, ou mesmo que Belial educadamente tivesse aberto a porta. Ele a esperava, e assim que A Mãe abriu a porta, uma sombra de olhos azuis deslizou ziguezagueante pela escada, sua forma tinha volume e peso devido ao contato com Belin, aquela comunhão fatal; mas também tinha rapidez e poder tremendos, devido ao Mistério roubado.

Outra coisa que Astarte, a Mãe, não sabia, além do Mistério e de seus próprios pequenos erros: o encaixe da comunhão oferecida por Belin com o próprio Mistério que um dia havia lhe pertencido em outro mundo, em outra época. Encaixe que tornou possível a Belial fazer o inesperado: a sombra quase humana, com o brilho azul demoníaco no lugar dos olhos, desceu como um relâmpago do topo da escada para a porta da frente, e garras cortaram a própria Realidade na frente de Astarte, sem tempo para que esta reagisse (já ia pronunciar seu grito de triunfo, era uma pena), tragando a ambos, Belial e Astarte, o Rebelde Sombrio e a Mãe Sombria, para um lugar que estava perigosamente próximo do Vazio: Raven Lake, além dos portais do paralelo.

O que aconteceu lá?

Creio que poderíamos dizer que o que lá aconteceu foi tão inconcebível, tão complexo e indescritível, que ocuparia talvez mais tamanho de texto que o próprio Mistério roubado (pode muito bem ser verdade!). Vocês poderiam também pensar que tivemos simplesmente preguiça de descrever, se quiserem. São livres. Mas o que eu acontece é que no fim das contas o que aconteceu aqui, nesta Realidade, foi mais interessante.

Belin enxergou a forma que um dia havia sido Eleonora, mãe de André, se dissolver nas correntes de energia do paralelo, em Raven Lake, ao mesmo tempo em que seus olhos carnais viam o precipício. Enxergou Belial retirar um fiapo de energia densa da forma-cadáver, e este terminar sua dissolução de vez. O demônio (podemos mesmo chamá-lo assim?) olhou para a frente, e para Belin era como olhar para um espelho, porque Belial a estava admirando com algum sentido desconhecido, uma visão além da visão. O choque, a retroalimentação de sensações que ia além dos cinco sentidos, fez a garota dar cinco passos para trás, veio o medo de cair no abismo.

E no espaço que ela desocupou, o ar tremeu e se distorceu naquela semi-obscuridade (já era noite?...), e logo à beira do abismo, sorrindo, apareceu a figura de André.

Surpresa, e sem questionar porque a ligação entre ela e Belial havia sido cortada, ela gritou:

– André!!! Que está fazendo aqui? Eu não esperava …

– Nem eu esperava, meu amor – respondeu a voz rouca, quente e familiar que Belin sabia não pertencer a André, e Belin foi abraçada com paixão e vigor enquanto a fagulha que Belial roubara de Astarte passava para Belin e nela acendia uma fagulha divina, um poder tremendo, um prazer e uma dor numa só sensação, uma onda desconhecida e ao mesmo tempo tudo que Belin precisava – eu sou o inesperado. E agora, NÓS somos o inesperado …

Os brilhos de dois pares de olhos dominaram então a noite: dois olhos azuis e dois olhos púrpura …


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

GRITO DE NEMESYN


Da autoria do administrador do blog, mas o heterônimo é a própria Nemesyn.


I>>


Ás vezes sou guerra, às vezes sou paz
Outrora fui equilíbrio, no amanhã serei discórdia
Há tempo de semear e tempo de colher, mas
Eu colho o fruto da semente do futuro.
Semeio vislumbres do ontem, e cego multidões para as possibilidades do amanhã.
Sou entropia e potencial, sou inércia demoníaca e rapidez angelical.
Tenho muitos rostos, e a dança que danço
Põe meu pé sobre as costas dos fortes e dos fracos.
O véu que tinge a noite de desespero me pertence.

Sou a ignorância que oculta o anseio de compreender;
Sou um maquinário que se esconde no ãmago do mundo
E uma metrópole celeste revelada quando você fecha os olhos.

O trono de Deus me pertence, a voz de Deus eu comando;
E ainda assim delicio-me com silêncio e anarquia,
Sou meu próprio contrário, sou a sombra opositora quando tudo está quieto,
E a radiância infernal que compreende a si mesma como onipresente.

Sou o Éden escondido no meio da carne e do sangue,
Sou Kerub postado nos portões, sou a espada de chama lunar que empunho.
Sou um fulgor de espíritos imundos que se purificam sob o olhar dos mortais,
Sou uma ausência de razão quando o mundo mais precisa de razão.

Tenho milhares de olhos e milhões de dedos com que te tocar...
Sente a pressão do cansaço em sua nuca, em seus músculos? Ali estou.
Sente a luxúria que vence a exaustão para mais uma noite escaldante?
Pois eu sou a isca que se mostra adiante, o ímpeto sem nome.

Sem nome, sem princípio nem fim, lobos alfa e ômega num só todo harmonioso
Que no instante seguinte se parte em mil pedaços e habita
A esperança que você sente de me enxergar um dia.




II>>>
Ó mortal, porque usa este nome?
Porque define sua identidade pela morte a que pensa estar fadado?

Muito além das sombras que a história projeta no passado
Eu um dia existi, e em meu frenesi de autodescoberta
Dancei,
E minha dança gerou isto que chama de vida e morte.

Eu era uno, eu era um facho doloroso que forçava caminho
Pelas pálpebras da humanidade primeva.
Um piscar de olhos, um laivo de compreensão e eram suficientes
Para que minha dança se traduzisse em miríades de cantos e cânticos
Pois, assim me disse a humanidade nascente,
Como pode haver dança sem música, movimento sem som?

Era eu ignorante, era eu incompleto, era eu um autômato?
Na verdade creio que assim não me descrevo bem,
Sou um impulso, um instinto, se assim desejar me nomear.
E como força irresistível me lancei a uma nova aventura,
E possuí a mim mesmo como a humanidade que achava estar despertando.
Um caminho cego, uma espiral eterna, sem limites,
Um abismo sem fim e uma terra sem fronteiras,
Assim me fiz diante deles e delas.

E me chamaram guerra.



III>>>>
De aço meteórico forjada ergui minha lança ao céu
Segredos semeei, discórdias plantei,
Como animal e fera e homem e mulher e anjo e demônio pintei minha pele de vermelho.
Então a humanidade me descobriu como a respiração incessante
Vigorosa, como a batida de um coração esperançoso,
Hálito e inspiração que advinha da dança como guerra, era eu o conhecimento
E conhecimento sendo, me fiz paz.
Me fiz satisfação, me fiz volúpia de prostrar-me nos campos de batalha
E desfrutar daquilo que conquistei, da paz que arrebanhei.

Se não era mais guerra visível,
Ainda assim não deixava de ser um pulsar intenso,
Um desejo inseparável da sabedoria,
Uma ventura fundida à desgraça,
Em suma a miséria encontrada na riqueza.

Ó paz amarga!
Eles buscavam cultuar-me em campos inférteis pedindo chuvas,
Adoravam-me antes da caça em templos de pedra e asfalto,
As ruas foram tomadas pelo dilúvio das minhas lágrimas,
E a tempestade que se sentiu não foi suficiente, eles não conseguiam compreender?

Pediam presas, e eu enchi suas casas e templos de feras ávidas.
Presas querem, presas terão.


 


IV>>>>>
Ah, o amor entre a língua e os dentes que ela percorre!
Me fiz presente, atrevi-me no coração da humanidade.
Sim, eu era fome que não era sentida no fundo do estômago,
Uma sede que não ardia na garganta e sim no coração.

Bênção, maldição e paradoxo foram meus sacerdotes
Naquela época em que a humanidade não se havia acostumado a meus dons.
Da mesma forma que eu estava em todos eles e elas,
Eles e elas queriam estar em toda parte, como eu mesmo estou.

Porque se iludiram que escrevi um conjunto de leis?
Minha única lei é o ser.
Sou caos e ordem, sou em toda parte cada uma das partes.
Drenar o veneno que espalhei nos corpos dos homens seria um dos meus mandamentos?
Se tem presas, as presas que pediu após a guerra,
Isto lhe parece algo óbvio como uma folha que se destaca da árvore
E cai no chão, dançando ao vento?


V>>>>>>
Vampiro e vampira,
Ouçam meu grito em seus corações! 
Se desejam se valer de meu manto ardente, ele muito os aconchegará.
Sempre serão incompletos, nunca encontrarão propósito nem finalidade
Se não enxergarem a si mesmos no mundo afora e naqueles que chamam de vítimas.

Vítima num altar de sacrifício,
Tão cega quanto eu sou, tão indetível e irresistível quanto eu sou,
A vítima, a fome e a sede se misturam num caldeirão fumegante.

A caça que exercem jamais será fútil
Se compreenderem que não há nada a ser compreendido,
Que o que buscam e este cheiro que os excitam
Não passa das pistas que deixo para que me encontrem.

Dominação. Submissão. Preparação. Exploração. 
Comunhão. Dispersão. Separação. União.
Vampiro e vampira,
Ouçam meu grito em seus corações!


Ritual de Prazer


by Nuit Engel & KEY, The Grey Knight*

Garras de desejo arranham minha mente
O som preguiçoso do rasgar de meus pensamentos
É ao mesmo tempo delicioso e assustador.
Uma lânguida força expõe os instintos nus e puros
Ocultos um dia sob meus pensamentos inúteis
E a noite da volúpia aflora em meio aos estilhaços
Da mente que só sabe agora se concentrar...
Em você.

Delírios de prazer, dor e nostalgia de tempos antigos.
O som da carne se rasgando e a deliciosa sensação do sangue quente escorrendo por nossos corpos
A noite da lúxuria!
Nossos corpos absorvidos pelas trevas da noite escura num ritual de prazer...

Acordo de um sonho macabro e ao mesmo tempo sedutor
O delicioso esforço do despertar me gera a revelação
Não era sonho nem sono, não era devaneio nem torpor
Era o rápido fechar dos meus olhos ao tocar teu corpo em chamas
O ritual de prazer havia começado!

Minhas mãos trêmulas a percorrer tua pele nua
a gélida sensação de perigo eminente que brota de seu olhar me excita
Um tormento de sensações fazendo com que nossos corpos se movimentem freneticamente.
Mãos, braços e pernas...
O halito quente que percorre meu pescoço me faz implorar por sua alma.

Mistérios vazios de um ímpeto irresistível se revelam a mim
A obscuridade rescende a um aroma da mais fina radiância infernal
Era o brilho obscuro da tua pele, o perfume do teu saboroso pescoço.

Um arrepio percorre meu corpo
Um desejo ardente numa possessão demoníaca
Seu gosto doce me consome em chamas enquanto o sinto entre minhas pernas...
Paixão enlouquecida que desmancha na suavidade do toque de suas mãos
Néctar da mais rara flor, o desespero do corpo que quer satisfazer a alma.

Despido da armadura noturna que me cobria,
Fascinado ante a paixão elétrica que nos percorre os corpos,
Beijo e mordo teu corpo, teus seios nus, teus quadris firmes,
Buscando uma explicação,
Um segredo a se mostrar, uma direção, um ensinamento desviante
Deve se esconder dentro do teu corpo divinamente sedento.

Me entrego completamente à este estado de plena loucura
Insensatez comanda meus pensamentos
Esperando pelo novo amanhecer de nossas almas
Deixe-me beber de tua vida, veja a escuridão em meus olhos
Minha boca a percorrer seu peito, explorando-o com a lingua
Sugando sua pele em movimentos sensuais de pura excitação

Eu te trespasso como uma adaga consagrada
Perfura o coração da vítima voluntária.
O Amor e a Vontade me dominam,
O Desejo e a Sabedoria me excitam.
Eu sinto a sombra de teus olhos caírem sobre mim
Quando o limiar entre a vida e a morte
É atingido e o orgasmo nos alivia o fervor da existência!


* Heterônimos de
Neith War 
(este um pseudônimo) e Arthur Ferreira Jr.'.

domingo, 25 de setembro de 2011

The Quest for the Frozen Tear


by KAY, The Grey Knight


Tear, treasure of this broken realm
Is the goal of the quest I've started.
The realm is everywhere. I don't know
Where its borders are, for they are inside me.
Tear, last bastion of a broken faith,
Call me in a howl thru the wastelands,
Thru the swamps, thru the desert
And I fear to awnser this call,
But the quest I started cannot be
Dismissed so easlily, so thoughtlessly.

The striders wander through the entire broken realm,
Searching every corner, searching every house,
Me in their midst, as a sheep among wolves.

The cenotaph is all we found, the tear is frozen,
Only in this dry and cold land that is my soul
Could this mockery of passion silently occur.

As we take the frozen tear to our homeland,
Ther perils of the journey back start to increase:
Nomads, marauders, sinners, necromancers...
All crossing our path, all trying to stop
The inevitable doom of the frozen tear.
We're home again. We're outside our very soul.
We finally cast the shameful frozen tear
Inside the bottomless pit of my lover's soul,
Where the remnants of the love she felt, ages ago,
Will turn the frozen tear into mist of tears...



Escrito em 05-11-2004, por Arthur Ferreira Jr.'.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

LIBERTAÇÃO

Arthur Ferreira Jr.'.



How much deception can you take?
How many lies will you create?
How much longer until you break?
Your mind's about to fall
And they are breaking through
They are breaking through
They are breaking through
Now we're falling, we are losing control

Muse, MK-Ultra



O BURBURINHO VAI AUMENTANDO NA IGREJA, conforme eu vou me espremendo pela multidão. Muita gente vestida de terno e gravata, saias compridas, roupas de mangas e golas mais envergonhadas, até mesmo crianças vestidas desse modo, presas em sua ânsia de brincar naquele lugar sagrado. Já era meu costume usar gravata no dia a dia, apesar de ninguém jamais me ver assim durante a noite – a verdadeira noite, quero dizer, não essa que se sente lá fora, no sereno úmido e na lua redonda. Súbito, o alvoroço da multidão cessa, e ouço retumbar nos alto-falantes uma bateção nervosa feita com os dedos, aquele praxe para checar o áudio e ao mesmo tempo avisar aos devotos que o pastor começará seu sermão. E aquela voz. Vibrante, impetuosa, quase furiosa: “IRMÃOS!”


        E nesse momento, eu sei, com toda certeza e verdade: estou na Igreja da Libertação de Deus.


        O pastor começa a vociferar aleluias e prometer dádivas divinas aos fiéis, castigo aos impuros e, mais importante, a libertação aos aflitos. Contrariando o que eu em parte esperava – já havia estado em algumas igrejas evangélicas, embora, ao entrar ali, eu já soubesse que não se tratava exatamente uma igreja normal de crentes – o pregador não pediu dízimos nem ofertas, não exaltou a necessidade da Igreja de ser sustentada pelos frequentadores, nem ordenou a passagem de saquinho de doações, nem mesmo usou de expedientes visíveis para forçar a culpa na garganta dos presentes, que poderiam se sentir mal se não contribuíssem. Se eu esperasse um local normal de pregação, estranharia também a falta de culpa nas noções do pastor, já que, embora eles raramente falem essa palavra (lidar com a isso é algo largado mais na mão dos católicos), a culpa seja algo de que a maioria desses cristãos buscam se livrar – mas que sempre os perseguem. O pastor não falou de culpa, nem pediu dinheiro. Não fez nada disso, e pareceu aproveitar o tempo que essa omissão lhe dava para exemplificar a libertação dos angustiados: chamou a primeira pessoa a ser liberta.




VAMOS RETORNAR ALGUNS MESES. Minha filha ainda estava viva. Cátia era uma garota esperta, cheia de vida, como canta o clichê. Uma moça que eu gostava de acreditar ser inocente (não no sentido de virgindade, mas sim de pureza de caráter, de ideias), de andar nos trilhos da normalidade. Algo lá no fundo me alertava que essa e outras crenças que eu mantinha não passavam de ilusões. Como sempre, não prestei a atenção a essa sensação, até que fosse muito tarde.
        
        Catuxa (era o apelido que minha mulher lhe dera) começou a sair muito à noite, e voltava estranha, seu comportamento alterado. Discutia com a mãe, me xingava, e depois se trancava no quarto. Eu e minha esposa discutimos sobre a possibilidade da menina estar consumindo drogas. Pois bem, estávamos certos, mas aquilo era só a ponta do iceberg, estávamos apenas… arranhando a carne da verdade.


    
FUI ARRANCADO DO DEVANEIO pelo berro da moça no tablado onde o pastor se movimentava, microfone em punho. Ela chorava, dizia sentir algo dentro de si que a atormentava dia e noite, queixava-se de dores, calafrios, e culpava o diabo. O pastor a agarrou pelos braços, deu cinco sacudidelas bem fortes, gritando nomes estrambóticos, que meses atrás me pareceriam ridículos. Eram palavras arrastadas, diria mesmo guturais, mais surpreendentes e assustadoras que o costumeiro espetáculo do religioso manifestando o pretenso dom de línguas.


        Nada daquilo parecia forjado – pelo contrário, a sensação de verdade, de autenticidade, permeava o ambiente. Não havia nada de hipócrita no comportamento do pastor, e eu tinha total certeza disso. Nos últimos tempos, eu desenvolvera um bom juízo de caráter, estando completamente certo de que aquele homem – chamava-se Pastor Neemias – acreditava piamente em tudo que fazia. Mesmo um tanto chocado com a violência do ritual e com as vociferações de Neemias, o estranho era que eu simpatizava com ele.


        Mas não com a moça escorrendo baba e convulsionando diante do pastor; ela merecia morrer.




A MOÇA SE PARECIA MUITO com minha filha Cátia. Olhos amendoados, grandes, pele bronzeada, cabelos lisos de índia, os contornos jovens de seu corpo tornados evidentes pela roupa um tanto apertada. Minha filha, tão esperta e cheia de vida. Minha filha, escorrendo baba e convulsionando diante de mim, há cinco meses atrás.


        Eu não sabia bem o que fazer. Era uma overdose. Ela não chegara em casa muito bem, trocando pernas, dizendo que enxergava coisas pela casa, reclamava do cheiro forte do lixo que ainda não fora trocado … trancou-se no quarto depois de um breve escândalo, coisa a que já estávamos acostumados.


        O que não estávamos acostumados era ao silêncio que se formou na casa, com ela dentro do quarto: normalmente, ela colocaria o som a altos brados, ou então resmungaria coisas estranhas que eram ouvidas no corredor. Forcei a porta, agoniado, e lá estava ela, num estado muito parecido com o da moça sendo curada pelo pastor …




O PASTOR SACUDIA OS BRAÇOS da moça, e num momento julguei enxergar que as unhas do pastor haviam se tornado garras afiadas, e rasgado a carne da menina convulsa. Mas essa impressão não durou menos de quatro segundos; talvez tenha mesmo acontecido.


        A moça praticamente desmaiou e foi retirada do palanque por um assistente. Quando passou perto de mim, carregada, eu enxerguei uma marca – praticamente um desenho – um arranhão profundo em seu braço, e ao vê-lo a sensação de que a moça deveria morrer aumentou.


        Essas ideias estranhas, esses impulsos mórbidos e imperativos, me perseguiram nos últimos meses. Não sei mais o que fazer, e vim aqui na igreja buscar alívio. Será que vim ao lugar certo?






CÁTIA ESTAVA INTERNADA num hospital, recuperando-se da overdose da qual sobreviveu. Foi nessa época que ouvi falar pela primeira vez da Igreja da Libertação de Deus, pela boca de uma prima.


        Ela falava dos milagres realizados pelos Pastores Simão e Neemias, que traziam alívio a endemoniados e viciados. E haviam vários viciados naquela comunidade onde ficava a sede da igreja. Os pastores chegaram até a atrair a atenção dos traficantes da região, mas depois de uma conversa a sós – assim corria o boato – o “dono” do morro deixou de interferir com a Igreja. Talvez tenha notado que essas “curas” não afetavam seu comércio; na verdade, um número cada vez maior de consumidores surgia, e as curas também aumentavam.


        Essa última opinião, cheirando a teoria da conspiração, emitida pelo sogro de meu vizinho, não era ouvida nem considerada pelos simpatizantes e defensores da Igreja da Libertação. Meu vizinho mesmo dizia que, no mínimo, a Igreja deveria ter algum valor ou caráter, porque não via as explorações que enxergava em outras igrejas do mesmo gênero. O sogro, seu Raimundo, argumentava que nem toda igreja evangélica explorava, que a Igreja da Libertação de Deus nem mesmo era evangélica de verdade, e que achava que as pessoas que iam lá sofriam uma lavagem cerebral.


        Só essa palavrinha desmoronava todo o crédito que eu poderia dar a seu Raimundo. Todos caíam na gargalhada, na rodinha de cerveja em frente ao botequim onde eu me reunia com os amigos, e a coisa ficava por aí, seu Raimundo envergonhado e seu genro acabava balançando a cabeça numa ironia muda, virava mais um copo e todos o imitavam, e o assunto mudava para outro qualquer.


        Eu estava frequentando demais aquele botequim, porque o problema de minha filha me angustiava sobremaneira. Os amigos já evitavam tocar nessa questão, e pouco a pouco eu já ia lá sem os amigos – afogava as mágoas na cachaça, sozinho, em plena madrugada, quando a insônia e os pensamentos recorrentes não me deixavam dormir.


        Uma culpa, principalmente, não me deixava dormir. Aquilo só podia ser culpa minha, porque minha mulher era tão cuidadosa, e eu, tão distraído. Eu deveria ter sido o pulso firme dentro da casa, ser mais homem, mais pai de família, enfim. Eu estava com quarenta e um anos, mas me sentia uma criança diante daquilo tudo, isso sim.


        Queria me livrar da culpa; me libertar.






O PASTOR NEEMIAS SE RETIROU do palanque e era a vez do Pastor Simão falar. A voz de Simão era bem mais suave, mais melíflua, quase tentadora. O pastor se enchia de piedade pelos escravos do mundo, dizia. Satanás tinha este mundo preso em suas garras, repetia pela terceira vez. “Irmão,” continuava o pastor de traços magros e tez pálida, olhos muito vívidos mirando a congregação, “sim, estou falando com você que veio hoje pela primeira vez. Não sei quem você é, mas não está mais sozinho. Porque o diabo – o diabo… – o diabo o tinha em suas garras e o afastava do caminho certo, mas você conseguiu fugir dele. Está aqui agora como os outros pintinhos, aninhados pelas asas da galinha, salmo 91, versículo 4. Ficai conosco, irmão! Essa angústia que sentires a será exterminada pela espada do anjo vingador!”


        Quando se empolgava, Pastor Simão misturava os tempos verbais e as citações bíblicas, mas ninguém ali estava ligando para isso – só a possibilidade, o aceno da libertação importava. Na verdade, ninguém se importava com a espada do anjo vingador, por mais próxima que ela na verdade estivesse…


        O que eles queriam era o êxtase, a glória do Senhor, e isso, ou algum sucedâneo ainda mais viciante que o sentido em outras igrejas, era o que Simão ia lhes dar. Depois de algum tempo falando, e se enrolando, Pastor Simão começava a jorrar bênçãos sobre a assistência, falando em línguas sussurrantes, quase orientais e pseudo-semíticas, um sussurro híbrido, tão alto que era ouvido de um canto a outro da igreja.


        Eu não me refiro só à amplificação do alto-falante. Havia algo naqueles sibilos que preenchia a sala, hipnotizava, e as pessoas começavam a também gritar em línguas, dançar frenéticas, rodopiar, pôr as mãos nas cabeças umas das outras, em nome do Senhor… a princípio não parecia nada muito diferente do que eu poderia presenciar em outros lugares assim, mas se numa outra ocasião eu ria daquilo tudo, agora me sentia tocado. A glória me invadia, e queria expulsar a angústia em meu coração.
    
        Não era só isso que era diferente de outras igrejas – enquanto eu dançava ritmado em meio ao povo, vi várias pessoas se beijando compulsivamente, e pessoas que eu pensava que eram estranhas umas às outras. Outras pessoas não eram tão estranhas assim – logo percebi, quando vi duas irmãs se beijando num abraço nada fraterno.


        Mas era a glória de Deus, a libertação de Deus. Nada de culpa, nada que me faria lembrar de minha filha… oh, não, mas uma das duas irmãs se parecia tanto que aquela amiga de Cátia que me procurou um dia…






CHAMAVA-SE VANESSA. Lábios finos, um sorriso tímido, cabelos cacheados e castanhos, pálida, baixinha e de óculos, mas muito graciosa. Atenciosa. Depois de um tempo ela largou os óculos e passou a usar lentes de contato de cores estranhas. Às vezes essas lentes brilhavam no escuro, era o que eu percebia quando ela vinha pedir notícias de minha filha, vinda da rua em sua iluminação defeituosa. Parecia estar se vestindo do mesmo jeito que minha filha, mas seu comportamento não era tão preocupante.


        Eu me preocupava mais com essas vindas quase à meia-noite, o bairro estava se tornando perigoso naquelas noites, talvez fosse a proximidade da favela, mas por outro lado, aqueles assassinatos que apareciam nos noticiários não pareciam coisa dos traficantes. Os especialistas no jornal diziam ser latrocínios perpetrados por alguma gangue, e não queima de arquivo ou coisa do tipo.


        A última vez que vi Vanessa não havia muito escuro lá fora, porque a lua estava bem cheia no céu. Dava para enxergar um halo bem forte ao redor do satélite, suas cores estavam quase psicodélicas, quando as formas e o rosto da menina ficaram visíveis diante da janela do segundo andar – eu estava arrumando meu armário e quase tomei um susto quando ouvi o “psiu” da amiga de minha filha.


        “Vanessa! Que diabo é que está fazendo aí na árvore?”


        “Tio,” falou a mocinha a coisa de um metro de distância, “o senhor precisa me ajudar. Deixa eu entrar, escancara a janela pra mim.”


        Minha mulher tinha saído naquela noite, visitando uma amiga. Foi uma coisa que de imediato me causou vergonha, mas estar daquele jeito com uma jovem assim, ainda mais amiga da minha filha, me excitou um pouco. Abri a janela.


        O que se seguiu foi estranho. 


        Ela pulou da árvore para dentro do quarto e caiu perfeitamente em pé, a cinco centímetros de mim; seus olhos brilhavam e aquela minha excitação que havia sido tingida de vergonha, se converteu em medo do desconhecido … até que percebi que os olhos brilhavam pela incidência da luz da lua sobre suas lágrimas: ela estivera chorando!


        “Tio, ela está morrendo… e eu não pude fazer nada pra evitar!” Desesperada (assim parecia), me abraçou com força. Não tive jeito de reagir ou de a recusar.


        A pele dela era quente, o abraço, forte. Mais forte do que deveria ser o abraço de uma menina daquele tamanho. E ela parecia tão cheia de vida … a minha excitação voltou, superando a pena e a confusão. E ela reagiu, rápida, à minha excitação. Já estava agarrando meu torso, o apertou com mais força e me beijou na boca.


        Sua saliva era quente e de um gosto bem mais forte do que qualquer boca que já beijei; sua carne, deliciosa ao toque e seu cheiro de mulher, que ficava mais forte, avassalador. Eu poderia me perder naquelas sensações. Mas algo me ocorreu e segurei-lhe os braços, impedindo que aquilo continuasse: “Que é isso? E quem está morrendo, Vanessa?”


        “Cátia. Me perdoe… eu… eu fiz besteira...” mas balançou a cabeça como se estivesse dizendo bobagens, e consertou: “quer dizer, eu acho que ela está muito mal, eu sonhei com isso.”


        “Não quer dizer nada. Ela está no hospital, e bem. Senão eu teria sido avisado. E, Vanessa…”


        “Mas eu não suporto. E será que fiz errado em passar aqui? Preciso de apoio. E também, não consigo me concentrar com…” interrompeu o próprio discurso de novo. “Me traz um copo d'água? Não tou muito bem.”


        Assenti, meio aliviado de ter alguns instantes para avaliar a situação, enquanto descia para pegar a água. “Traga dois copos!” gritou ela do quarto enquanto eu descia as escadas.


        Peguei logo uma jarra e subi de volta, rápido; nem consegui, também, me concentrar no que estava de fato acontecendo. Era como se eu fosse um hiperativo.


        “Minha família é espírita,” ela foi explicando assim que entrei de volta no quarto, “e eles dizem que beber água fluidificada faz bem quando a gente está assim, abalada. Então vamos nos concentrar um pouquinho, eu não quero rezar, nem sei rezar direito, dizem que a água se energiza e se bebemos, faz bem, acalma, sei lá.”


        Achava aquilo uma tolice, mas concordei por talvez poder acalmá-la. Por outro lado, a situação era meio… broxante, para usar a palavra exata. Eu havia estado extremamente excitado poucos minutos atrás e agora ia “fluidificar” água junto com aquela garota.


        Ficamos um tempo parados, sentados no chão do quarto, a luz da lua caindo sobre o aposento mergulhado em penumbra. Até fechei os olhos, entrando na onda dela, para melhor me “concentrar”. Logo depois que fiz isso, ela disse, “Vamos beber, então.”


        Tomei a bebida a goles sôfregos, queria acabar logo com aquilo. Ela também bebeu o copo dela bem rápido, e não contou conversa, me agarrando de novo. Ela não saiba o que queria, afinal de contas!


        Nos abraçamos e ela ficou por cima de mim, ávida, feroz. Acabamos tirando a roupa e começamos a fazer sexo ali mesmo, no chão. Parecia tudo muito bem (eu havia esquecido completamente a existência de minha mulher e de minha filha hospitalada), o cheiro dela invadia todo o quarto, era como se fosse uma nuvem invisível me afetando, me atiçando… até que ela começou a se empolgar demais.


        Os dois sentados um diante do outro, as pernas em tesoura na penetração, ela arranhava minhas costas com uma força além de qualquer outra mulher que havia me arranhado antes. Era dolorido e as unhas pareciam mais garras que outra coisa. Além disso, eu estava começando a me sentir esquisito: me mexia dentro dela com uma velocidade anormal, como se fosse um animal selvagem, e minha vista começava a … borbulhar na minha frente, distorcendo o que eu enxergava. Os cheiros começavam a ficar mais fortes, além do cheiro dela, eu sentia o cheiro de madeira da chuva da tarde, que havia subido pelas casas há várias horas; o cheiro do perfume de minha mulher, que estava bem longe dela, mas ficou parada pondo perfume na porta do meu quarto, enquanto conversava comigo, umas duas horas antes; o cheiro de comida vindo da geladeira fechada. O cheiro da luz da lua entrando no quarto. O cheiro de minha mente estalando, o cheiro da fome de Vanessa.


        Ela me derrubou no chão, grunhindo: “Sente o sangue ferver? Sente tudo mais forte? MAIS VIVO?” Suas formas pareciam animalescas, diante de mim. O que eu enxergava era uma mulher e um bicho ao mesmo tempo, sua vagina era quente e apertada, apertava demais, ela tinha escamas por todo o corpo e seus olhos brilhavam com uma luz muito amarela, vívida. A língua (parecia bífida) vibrava para fora da boca, que se escancarava ao gritar, gemer, num ângulo impossível para uma mandíbula humana; como se ela fosse uma cobra prestes a engolir um touro.


        E eu me sentia sendo engolido.


        Logo, isso se provou literal. Ela avançou sobre meu ombro, me segurando com toda força, e eu não conseguia reagir, ainda preso sob ela e entre suas pernas. Me sentia como se estivesse drogado. E ela me mordeu o ombro; não só mordeu, mastigou e arrancou pedaços do meu ombro. Senti-me devorado vivo e desfaleci de dor, não sem antes as alucinações piorarem e eu enxergar Vanessa tornando-se uma serpente gigante, enroscando-se em volta de meu corpo, me estrangulando…


        Acordei no chão, com uma dor de cabeça incrível. Já era de manhã e a luz do sol entrava, iluminando tudo de modo tênue. A porta do quarto estava fechada e dava para enxergar a chave virada nela, deixando-a trancada. Droga, a minha mulher… onde será que ela havia dormido?


        Com a cabeça rodando, examinei meu corpo e vi que havia, sim, uma marca no ombro – mas podia ser muito bem uma marca de uma queda, eu poderia ter caído da cama … parecia uma mordida, e ao mesmo tempo não parecia. O ferimento ardia e eu sentia quase como se ele estivesse se fechando.




ME PEGUEI BEIJANDO A MOÇA que parecia Vanessa. Bom, agora eu não tinha satisfações para dar à minha mulher: ela havia me deixado, depois da morte de Cátia. Sim, porque Cátia havia, sim, morrido no hospital naquela mesma noite; e minha esposa havia esmurrado a porta do nosso quarto, tentando me avisar, mas eu juro que não ouvi nada, naquele sonho estranho com Vanessa.


        O salão havia se convertido em uma quase orgia. Ainda bem que a igreja não era do tipo de portas abertas, aceitando os fiéis ou curiosos que passam pela rua. Não, a igreja – aquela filial da igreja – ficava num antigo cinema, mas a assembleia acontecia mais para dentro, na sala de cinema propriamente dita. Não vi cenas de sexo propriamente dito, mas era tudo como uma bacanália, em vez de bacanal: uma celebração dionisíaca, vários cantavam hinos em meio à liberação.


        Então, de maneira quase orquestrada, simultânea, todos começaram a louvar a Deus num hino, pulando e erguendo os braços. O pastor Neemias reapareceu no palco e voltou a bradar em línguas … só que, desta vez – e eu já estava bastante alto, como se estivesse alcoolizado, e olha que fazia uns dois dias que não bebia – “entendi” o que ele gritava, era também um hino, mais ou menos assim (aquelas palavras ficaram gravadas a fogo em minha mente, e era só em minha própria mente que as compreendia):


        Ave, Senhor Tsathoggua, Pai da Noite!
        Glória, ó Antigo, Primogênito da Entidade Exterior!
        Salve, Aquele Que Já Era Antigo Além do Imemorável
        Quando as Estrelas Geraram o Grande Cthulhu!
        Todo Poder ao Rastejante Ancestral, sobre os lugares podres de Mu!
        Iä! Iä! G'noth-ykagga-ha!
        Iä, Iä, Tsathoggua! 



        Depois que pronunciou aquelas frases (algumas das palavras eram percebidas como pura insensatez, como esse “Tsathoggua”), os fiéis foram se dispersando em fileiras mais ou menos organizadas, saindo do salão de assembleia e dirigindo-se às saídas; mas nem todos.


        Fiquei meio sem jeito com tudo aquilo (sei que andava mal da cabeça e do coração, nos últimos tempos, mas aquilo superava muito, em estranheza, o que eu esperava) e já ia dando mostras de também ir embora, sem chegar a falar de fato com ninguém, quando senti uma mão no meu ombro.






        Era o Pastor Simão.


        Ele tinha um pouco de mau hálito, disfarçado pelo uso de balas de canela (dava para perceber com nitidez). “Você parece não pertencer ao rebanho, irmão” disse o pastor.


        “É a primeira vez que venho aqui, e…”


        Ele riu. “Não era disso que eu estava falando.” Seus olhos brilhavam, intensos, meio que me sondando. Ficou alguns segundos esperando que eu disse algo, talvez, e completou: “O Pastor Neemias quer falar com você.”


        Como assim? Não estava entendendo nada, será que alguém do bar falara dos problemas com esse pastor? Só fiz assentir e Neemias fez um gesto para que o seguisse. No meio do caminho, algumas pessoas desativavam os aparelhos de som, enquanto outras, bem menos numerosas, se encaminhavam para a parte ainda mais interna da igreja.


        E foi para lá que nos dirigimos. Chegando numa sala mais ou menos ampla, embora bem menor que o salão, cheia de cadeiras e (o que era estranho para uma igreja) divãs, ou sofás de reclinar, parecidos com aqueles dos filmes romanos. Havia ali também uma espécie de púlpito.


        E, recostado sobre ele, de jeito quase displicente, o Pastor Neemias, cofiando a barba grisalha. Era um homem robusto, apesar da idade talvez já acima da casa dos cinquenta.


        “De onde veio, você, irmão?” perguntou ele, ríspido, entrando em choque com a simpatia que senti por ele, que viera ali quase disposto a contar tudo dos últimos meses, como se ali fosse um confessionário católico. Da morte da minha filha, dos sonhos estranhos, das ideias despropositadas, da fim do meu casamento, do sumiço de Vanessa. Talvez eu viera no lugar errado. Talvez não.


        “Me recomendaram esta igreja, eu ando meio angustiado, e…”


        “Corta essa conversa de crente. Dá pra sentir o seu cheiro, você achava que não?” Despegou-se do púlpito e veio avançando na minha direção.


        “Do que é que você está falando?” Apreensivo, olhei para os lados: eu, os dois pastores e mais umas três pessoas, incluindo aí duas mulheres. Vestidos do jeito padrão para um grupo de crentes, mas com uma postura corporal totalmente distinta. Diabos, um deles parecia estar mostrando os dentes para mim!


        Aquilo, mais Neemias se aproximando como se fosse fazer círculos ao meu redor, me despertou uma espécie de reação automática. Minha postura ficou um pouco mais curvada, os membros, tensos, pronto para responder com violência, se fosse necessário.


        “Isso aqui é nosso território,” sussurrou estranhamente aquele que se dizia Pastor Simão. “Não acha que fez mal ir entrando sem ter avisado antes?”


        “Não faço ideia do que estão falando,” repeti. “Para mim, isto aqui era apenas uma igreja… normal.” Esta última palavra demorou um pouco para sair; eu mesmo sabia que estava mentindo, nunca ouvira falar da Igreja da Libertação de Deus como igual às outras. Apesar de nunca ter me chegado notícia de orgias, antes.


        A cara que Neemias fazia era de raiva e confusão. E eu, se não estava totalmente assustado, estava muito apreensivo. “Que é isso de território?” perguntei, dando um passo em direção à porta por onde havia entrado.


        Mas fui impedido de me movimentar com mais liberdade, porque o homem que mostrava os dentes para mim, nos cantos da sala, avançou também e cortou minha saída. Talvez tivesse agido contra mim, se uma das mulheres não segurasse seu pulso, vindo rápida na direção dele, e falasse alto, para todos:


        “Esperem! Ele pode ser um apagado… um novato que não sabe o que é. A Garra anda provocando muitos desses, ouvi dizer.”


        “Mas o cheiro dele é diferente,” interrompeu Simão. “Tem alguma coisa diferente nele, é como se fosse um licantropo há anos!” Licantropo? Aquela palavra estranha me deixou mais confuso, onde já a houvia encontrado…?


        “Não importa” falou o homem de dentes expostos – o cheiro dele também era forte, como de um cachorro que não tomava banho; olhando também para a mulher que havia intercedido, percebi que ela tinha um cheiro insinuante e forte, e que, na verdade, a linguagem corporal de todos eles se parecia com a de animais. “Se é um novato, vai ter que se submeter a nós.”


        Submeter? Eu começava a ficar ainda mais nervoso.


        “Calma,” interveio Neemias, agora um pouco menos tenso. “Vamos lá, irmão. Faça o que veio fazer aqui, ou o que disse que veio fazer aqui. Conte seus problemas.”


        Os outros relaxaram um pouco a postura de alarma, era como se Neemias fosse o chefe deles, incondicional. Então desabafei, contei tudo que esperava contar, dos sonhos, da minha filha, de Vanessa (esquisito que quando mencionei esse nome e o incidente, alguns deles ergueram as sobrancelhas), das alucinações… nesse ponto, perguntei, “Quem é Tsathoggua?”


        “Ah, irmão!” reagiu Neemias. “Então você é digno de saber a verdade do nome de nossa igreja. É um duplo sentido, sabe… a Libertação é a Libertação de Deus, você veio aqui se libertar do próprio Deus, porque o Deus que aqui cultuamos não é esse deus fraco que se faz de forte, que os homens conhecem mal e por medo, o procuram; veneramos um deus como nós. Como eu e você. Ele é um guia, Tsathoggua. Um ser amorfo, divino, como você e eu.”


        “Como eu e você?!?”


        “Sim, mas acho que uma imagem vale mais que mil palavras. Chegue aqui, vamos até o porão. Vai ter que confiar em mim, e sabe que não tem muita escolha. Mas não te desejo mal, e você sabe disso, também. Não é?” De novo, aquela aura de simpatia e confiança, mesmo no meio de estranhas conversas e algaravias em línguas desconhecidas.






       
DESCEMOS AS ESCADAS SUJAS que se escondiam atrás de uma porta discreta. Eu ia ao lado de Neemias, enquanto Simão e os outros (que disseram se chamar Teodoro, Liziane e Marluce) vinham logo atrás. Por um instante pensei que ia encontrar um tipo de calabouço iluminado por tochas, ou então um local ritualizado, cheio de velas, mas não era nada disso; no caminho alguém apertou uma tecla e luzes fluorescentes encheram o pavimento inferior. Foi então, ainda no alto da escada, que a vi.


        Aquela coisa. O cheiro dela era ainda mais forte que o dos outros, extremamente familiar e ao mesmo tempo surpreendente. Uma mulher (via-se pelo contorno dos seios, de bicos muito pontudos, e pelos quadris arredondados) coberta de escamas muito grossas, negras… e a cabeça era totalmente ofídia, com um capelo de naja, no lugar dos cabelos. Ela estava nua, acorrentada a uma das paredes daquele… deveria chamar de dormitório? Estava cheio de camas de campanha.


        Ao nos ver, o monstro começou a se debater e berrar. “A porta lá em cima está bem fechada?” perguntou Simão a uma das mulheres, que assentiu afirmativa.


        “O… o que é isso? Será que estou sonhando, de novo?”


        Neemias foi me empurrando pelas escadas e falou, na voz uma seriedade forçada contrastando com o rosto alegre e excitado: “Não a reconhece? É ela. Aquela que matou sua filha.”


        “Matou minha filha, como assim? Minha filha morreu de infecção hospitalar!”


        “Não exatamente. Sua filha só estava naquelas condições, para começar, por causa de… Vanessa.” Aquela era Vanessa? Percebi então como aquele ser se parecia com as formas do corpo da moça que eu só havia visto nua uma vez, em sonho; e que parecia não muito sonho, agora; e foi então que me lembrei de como o sonho terminou…


        “Nós sabíamos da sua história, indiretamente,” falou Simão, mais uma vez num sussurro, mais um sibilo agora, “por ela, que era parte do bando. Agora está aí, de castigo. Foi ela que apresentou a droga Garra para sua filha; foi ela que tentou reanimar sua filha no hospital, e falhou; foi ela que, depois de falhar, foi se consolar com você, e acabou fazendo de você… um aperitivo. Já fez isso antes, matou um tal Caio, melhor amigo dela… Mas ela não imaginava que ao… temperar você, acabasse te despertando.”


        “Bando? Tempero?” Então, me veio o choque. Ela havia me drogado, posto algo na água, enquanto eu me concentrava, naquela noite terrível. “Mas porque ela fez isso???” perguntei desesperado.


        “Porque ela gosta do tempero da droga na carne humana… a GARRA que desperta ALGO naqueles destinados, a Garra na carne humana… coisa que você também vai aprender a gostar,” respondeu exultante Neemias, me segurando pelo braço, “porque você é um de nós!”


        A coisa serpentina diante de nós começou a se debater quando Neemias se transformou, seu agarrão no meu braço tornando-se cinco garras me prendendo com força. Era um monstro peludo, que ao crescer rasgou o paletó de Neemias, postura curvada e cabeça como a de um gigantesco chacal ou lobo.


        “ENTÃO,” grunhiu Neemias, “JÁ SABE AGORA O QUE VOCÊ É?”


        Os sonhos. Os sonhos que eu havia tido naqueles últimos meses, me vieram como um baque sobre a cabeça. A vontade de matar era genuína, porque eu era um monstro. Não sabia se tinha mesmo estripado inocentes daquela forma que me lembrava, nos sonhos, mas era tudo vividamente real. Eu corria pelas ruas da cidade, livre, caçava e matava e devorava.


        Os outros assumiam formas animalescas menos evidentes, mas mesmo assim assustadoras: Simão exibia escamas de um mosqueado verde-amarelado, e olhos tão serpentinos quanto o de Vanessa acorrentada; Teodoro tinha os braços muito peludos e dentes muito afiados, e estava barbado como não era poucos minutos antes; Marluce exibia olhos azuis, de um azul que não era humano, e garras como as de um gato; enquanto Liziane era de todos a mais assustadora, com a pele viscosa coberta de ventosas, os braços flexíveis como tentáculos.


        E o mais estranho, para mim, era que eu sentia muito medo, mas o medo não me dominava. Era como se eu já estivesse acostumado com aquilo – e com todas aquelas metamorfoses, eu seria o único humano ali no porão… se não fosse a reação que me possuiu: minha pele coçava como se estivesse alérgica a alguma coisa no ar, e aquilo piorou chegando a arder, a queimar; o tempo parecia parar enquanto aqueles animais me rodeavam e eu me aproximava da acorrentada, presa a grilhões de cor muito prateada.


        Então vieram as alucinações – os cheiros muito mais fortes, a umidade do ar parecia mais espessa, e se mexer, reagindo aos movimentos do bando de monstros; haviam zumbidos, silvos e estalos por toda parte; um ruído surdo preenchia minha cabeça… e naquele instante interminável, vi a luminescência, aquele halo hediondo e psicodélico que havia enxergado na lua, na noite em que Vanessa me havia visitado.


        O halo envolvia as correntes de prata que prendiam a moça, monstro, parente, fêmea, consorte, estranha e familiar, favorita e odiada, prostituta e santa, deusa monstro. E eu sabia que as devia tocar: para tocar na pele da minha deusa e amante, devia estraçalhar os grilhões… era a mensagem que me vinha à mente, tão verdadeira quanto o cântico em línguas, declamado por Neemias.


        “É A SUA CHANCE, “bradou Neemias, “PODE SE VINGAR DELA, VOU TER O MAIOR PRAZER DE ASSISTIR, É UMA PUTA TRAIDORA.”


        “BANDO… PORRA NENHUMA!!!” Num só movimento, agarrei as correntes de prata e as puxei, quebrando o pino que as prendia na parede, e sacudi aquele excesso de grilhões sobre o rosto – não, o focinho – de Neemias. Meus músculos pulsavam com uma sensação de poder nunca antes sentida, e punir o pastor só aumentava o prazer daquela sensação de poder. Eu não tinha mais nada a perder na vida, a não ser Vanessa.


        “Como assim ele é imune à prata???” gritou apavorada, aquela coisa cheia de ventosas e tentáculos. Tinha muita razão para estar assustada; eu mesmo me aterrorizava ao perceber que minha pele era agora um couro espesso, cheio de escamas e espinhos, rasgando minha camisa.


        Os três mais fracos estavam como que paralisados frente à cena. A prata, me veio a ideia no fundo da mente. Estilhacei o anel do braço direito de Vanessa, lhe dando mais liberdade de ação e a libertando, também, da dor da prata. Enquanto eu vibrava novamente o emaranhado de correntes na pele do lobisomem – sim, era isto que ele era, sem a menor dúvida, agora – dei tempo suficiente para que Vanessa superasse, um esforço tremendo, a dor e quebrasse o anel de prata do outro pulso. Coisa que nunca mais conseguirá repetir na vida.


        A cabeça animalesca de Neemias estava banhada de sangue e suas feridas eram graves. Ele ainda tentou me atingir com suas garras, mas consegui me esquivar da maioria dos golpes e só um deles me acertou – e o ferimento pouco me atrapalhou, começando a sarar quase que no mesmo instante.


        Aproveitei um momento em que Neemias se contorceu de dor, e o instinto de fuga assumiu: empurrei Vanessa na direção da escada, e corremos. Eles não ousaram nos seguir, os três devem ter tentado cuidar de seu… líder, pastor, o que seja. E que o tal deus amorfo deles se fodesse.


        Quando ultrapassamos a porta que separava o porão do fundo da igreja no nível térreo, consegui ouvir a voz sussurrante de Simão, “É o Dragão… o monstro que devora a lua... estamos acabados…”


        Na câmara onde haviam aqueles divãs todos se encontrava também um grande espelho na parede, como numa sala de dança ou ensaio teatral. E eu me vi. Um monstro reptiliano, de garras malignas empunhando correntes de prata, cheio de escamas e espinhos de cor azulada, a cabeça deformada, draconiana, os olhos de uma cor mortal e prateada.


        As formas de Vanessa começaram a suavizar e seu rosto assumiu as feições femininas que eu conhecia, “Rápido! Não temos tempo pra ficar se olhando no espelho, tio!” Puxou o lençol que cobria um dos sofás e cobriu sua nudez. Minha vontade era de a possuir ali, de novo, como naquela noite, dessa vez, seria tão mais pleno…


        Os olhos de Vanessa se estreitaram e percebi a serpente nela se manifestando, sibilando: “NÃO. AGORA NÃO É O MOMENTO. Vamos sair daqui,” sua voz foi voltando ao normal.


        Naquela noite corremos pelas ruas como dois malucos perdidos num labirinto, depois de ter quebrado uma janela dos fundos da igreja. Em um certo momento paramos e ficamos abraçados como se fôssemos dois indigentes na noite fria e enluarada, marido e mulher, suados e ofegantes, ela muito pior que eu, as minhas roupas rasgadas e ela envolta num cobertor.


        Passou um anônimo na rua, sentiu pena, meteu a mão no bolso e foi tirando umas moedas, dizendo, “Tá precisando de uma pratinha pra alimentar sua esposa, amigão?”


        “Prata?" respondi, finalmente rindo depois de tanto tempo, assustando o transeunte. “Não, pode deixar … já tenho toda a prata que preciso ...” 


        No meu sorriso brilhava a luz da lua; nos meus olhos prateados, a certeza da libertação.