domingo, 23 de outubro de 2011

FRAGMENTOS E ITERAÇÕES


por Arthur Ferreira Jr.'.




Hello again, friend of a friend, I knew you when
Our common goal was waiting for the world to end
Now that the truth is just a rule that you can bend 
You crack the whip, shapeshift and trick the past again
METRIC, Black Sheep








PRIMEIRA ITERAÇÃO


UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos azuis brilharam no escuro, e a humanidade seguia seu rumo, sem notar a diferença.

Belial corria pela avenida, desfrutando do prazer e euforia das fraquezas humanas. Havia ido embora a desorientação das primeiras noites naquele corpo que se chamava André, e o vampiro, um Vulto Vulpino em busca do paradeiro de outros, havia deixado sua nova consorte, Belin, experimentar suas capacidades vulpinas, brincar.

Enquanto isso se deixava correr à toa, às cegas pela cidade decadente dos humanos. Estava quase se acostumando a ser algo entre humano e a entidade quase-imaterial que antes era. Depois da possessão de André. Belial quase deixava suas presas à mostra e revelava sua natureza através dos olhos azuis brilhantes, de tão fora de controle que corria, sem destino.

Ia correndo pela cidade labiríntica, mas escolhendo deixar suas pegadas pelas avenidas mais largas e cheias de carros, arriscando sua nova vida, embora apenas aparentemente. Os pés se movimentavam cada vez mais rápido, mas ainda dentro dos limites humanos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava as capacidades sobre-humanas de Belial. Passando debaixo de um viaduto, ele sentia suas passadas ganharem novo ritmo. Era cadenciado. Era sincopado. Era insano, aquele ritmo. Cuco, cuco, cuco: como um bater de coração cheio de adrenalina, tonto de dor e prazer. Os olhos de Belial subiram a tempo de enxergar a forma feminina caindo do viaduto. A queda espetacular e rodopiante desafiava as barreiras do próprio tempo, e Belial percebeu que havia seguido as linhas de força certas daquela cidade, chegando no momento exato do chocar de mais um ovo mental, mais uma vampira nascia.

Nascia e morria. Desfigurada, entre a morte e a vida, ela sugou o ar sujo pela primeira vez, pois só agora percebia quem era, quem sempre fora. “Ananke” era o nome que brotava de seus lábios machucados.

Belial e Belin contemplavam a garota quase cega, mutilada, suas medonhas cicatrizes revelando, pouco a pouco, penas afiadas cortando-lhe a carne. Ela era um monstro, mas um monstro útil: Belial a usaria contra Kronos, conseguiria a atenção daquele maldito milenar, e se tornaria o novo Maestro da Morte.



MEIA HORA ANTES…

Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma colina específica, onde ela podia se recostar num estranho monumento – um menir, ou outro tipo de pedra ereta – e ler trechos dos vários livros que trazia. O monumento era a razão do tombamento daquela área, tão próxima à vila, mas tão selvagem.

O hábito de ler trechos de livros separados, saltar pedaços como se movida por uma intuição vinda não sabe-se de onde, pouco a pouco fez de Belin alguém capaz de conectar fatos à primeira vista não relacionados… e também de cometer erros quase estúpidos, aos olhos das pessoas de raciocínio mais comum.

Esse raciocínio incomum foi o que trouxe Belin e seu amante – amante? Seu consorte, como ele às vezes a chamava, para aquela cidade grande, suja e labiríntica, cheia de ladeiras, grandes avenidas e viadutos. E agora ela observava da janela escancarada, Belial exercitando-se ao sol. A transformação em Vulto deixara Belin mais pragmática, e ela estava ocupada em escanear os livros que trouxera de sua cidade – aqueles livros de ocultismo que pertenciam a sua mãe, e aqueles livros mais obscuros ainda, que ela conseguiu trazer de Raven Lake além dos portais do paralelo, coisa que nem Belial conseguia fazer. Assim poderia ler os livros com mais conforto pelos lugares onde vagariam no futuro, direto no laptop que roubaram, ou em qualquer outro aparelho ainda menor que roubassem no futuro.

O processo de escaneamento desses livros de Raven Lake era lento e sofrido, porque alguma coisa neles atrapalhava o funcionamento das máquinas eletrônicas, e às vezes, a imagem resultante não era exatamente o que Belin enxergava com seus olhos violetas. Frustrada com mais um fracasso (até então só conseguira escanear um livro completo, e trechos pequenos de cinco outros), a moça – a vampira – contemplava Belial lá embaixo terminar suas séries de abdominais, levantar-se e gritar:

“Desça aqui! Veja se consegue me pegar … ”






UM MÊS E MEIO ANTES …

“O homem não saía de sua mente, tinha certeza de que não era alucinação. O que ele teria feito? O que ele queria dela? Seria um ladrão? Não, definitivamente não podia ser.”

Belin não podia estar mais errada. Agora ela sabia.

Belial era sim, um ladrão. Ladrão de mistérios no estranho lugar de onde veio, ladrão de vidas neste mundo mais sólido onde as escolhas são mais limitadas. Naquele instante, porém, com o sol nascendo por trás das montanhas e seus primeiros raios caindo quentes sobre a pele dos dois amantes na beira do precipício, Belial revelava outra de suas facetas: o de alguém apaixonado (pois se Belial era mesmo um demônio, não são demônios a essência da paixão?).

Os olhos púrpura de Belin arregalavam-se devagar com a chegada do sol, impiedoso e inclemente o sol lhe parecia, mesmo sendo a tênue luz que encerrava a madrugada deliciosa e selvagem que haviam passado. Os dois estavam deitados, seminus e suados e muito próximos da beirada do precipício, e Belin começava lentamente a entrar num estado de pânico que jamais havia sentido antes. Era o sol. Sim, era o sol que estava lhe causando aquilo. Semierguida, ela tentava inutilmente fugir, mas seus músculos um tanto cansados não lhe obedeciam direito. Olhos azuis lhe fitaram preocupados, e a mão de Belial – que um dia Belin conhecera como a mão de André, e que de início Belin pouco teria imaginado percorrendo-lhe todo o corpo como acontecera durante a noite – lhe segurou o ombro com firmeza.

“Calma. Calma. É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique calma. Eu devia ter avisado, meu amor. Venha, recoste-se em meu peito, respire fundo, vai passar se você aceitar que agora é outra pessoa. Sua verdadeira natureza se revelou, não consegue sentir?” A moça agarrou-se a Belial com força, os olhos recusando-se a deixar de olhar o sol nascente.  Belial continuou falando, já que Belin a princípio não conseguia responder nada:

“É só um reflexo. Não é real, pelo menos não aqui em seu mundo. Tenha calma, respire fundo, já disse, o sol NÃO PODE TE FERIR! Sua pele é ainda a mesma, minha querida, sua natureza só mudou por dentro, acha que o poder ia te deixar tão desprotegida durante metade do tempo? Vamos, respire fundo, isso, e com mais calma, perceba que seu corpo não está morto como sua mente quer te enganar… a noite que passamos não prova isso mais do que nunca, Belin?”



SEGUNDA ITERAÇÃO


UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU,  vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos azuis brilharam no escuro, o colapso das realidades, uma explosão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, dor, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade seguia seu rumo, inquieta em seu sonhos despertos, e ávida de sua própria existência.

Belial corria pela avenida principal da cidade labiríntica, e Belin estava quase o alcançando. Ela ria com a brincadeira que testava suas capacidades vulpinas, e os dois quase expunham suas presas, revelando suas naturezas através dos olhos brilhantes, de tão fora de controle que corriam, sem destino. Os carros engarrafados num entroncamento eram perfeitos para que eles se movimentassem cada vez mais rápido e sem perigo, mas ainda dentro dos limites humanos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava as capacidades sobre-humanas do casal de vampiros, mas Belin não temia mais o sol como havia acontecido no seu primeiro alvorecer após a transformação vulpina.

Passando perto de um viaduto, eles ouviram uma ambulância correndo a alta velocidade, desviando-se dos carros que lhe dava passagem, e o ruído da sirene parecia diferente, num ritmo bizarro. Era cadenciado. Era sincopado. Era insano. Cuuuuuuco, cuuuuuuuuco, cuuuuuuuuco… como um bater de coração acelerado, tonto de dor e prazer. Os olhos de Belin e Belial enxergaram a tempo para onde a ambulância se dirigia – uma moça havia se jogado do viaduto.

De repente, Belin estacou e segurou o ombro de Belial – percebeu, e mostrou ao companheiro, que eles haviam seguido as linhas de força daquela cidade, chegando logo após o chocar de mais um ovo mental, mais uma vampira havia nascido. Nascia e morria. Desfigurada, entre a morte e a vida, ela sugou o ar sujo pela primeira vez, pois só agora percebia quem era, quem sempre fora. “Ananke” era o nome que brotava de seus lábios machucados; e mesmo a cinquenta metros de distância, os dois Vultos conseguiram ouvir aquele nome terrível.

Os paramédicos e enfermeiros lhe davam assistência, ela lhes parecia muito ferida, e corria risco de vida. Belial sabia que ela era um monstro, mas um monstro útil: Belial a usaria contra Kronos, conseguiria a atenção daquele maldito milenar, e se tornaria o novo Maestro da Morte. Se havia alguma coisa em que era habilidoso, era nas artes da ilusão: agiu rápido, e os dois conseguiam contemplar a  a garota quase cega, mutilada, suas medonhas cicatrizes revelando, pouco a pouco, penas afiadas cortando-lhe a carne; mas os enfermeiros e paramédicos enxergavam apenas o que queriam ver, aquilo que foram socorrer: uma garota muito ferida, correndo risco de vida.

Ao longe, do lado de um dos poucos orelhões que funcionava de fato naquela cidade, uma figura observava a acidentada, seus socorristas e os dois vampiros, sem ser percebida.





MEIA HORA ANTES…

Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma certo precipício, de onde conseguia enxergar, lá embaixo, uma colina onde havia um menir, um monumento antigo feito de pedra, provavelmente ereto ali pelos antigos nativos da terra e que era a razão do tombamento do bosque.

O hábito de ler trechos de livros separados, saltar pedaços como se movida por uma intuição vinda não sabe-se de onde, pouco a pouco fez de Belin alguém capaz de conectar fatos à primeira vista não relacionados… e também de cometer erros quase estúpidos, aos olhos das pessoas de raciocínio mais comum.

Talvez o pior desses erros foi aquele que trouxe Belin e seu amante – amante? Ele a chamava de consorte – para a grande cidade labiríntica, tão suja e cheia de viadutos, avenidas intermináveis, encruzilhadas e ladeiras. Aquela cidade a frustrava, mas os tomos de ocultismo que pertenciam a sua mãe, e mais aqueles livros mais obscuros ainda, que ela conseguiu trazer de Raven Lake além dos portais do paralelo, com a ajuda de Belial, lhe davam indicações soltas que, quando unidas, davam a impressão de que a existência dela, Belin, era algo predestinado, e predestinado a revelar seu maior potencial ali, na cidade grande.

Quase o sonho ingênuo de uma adolescente do interior, e na prática era isso mesmo. Estar ao lado de seu amante vampírico, observá-lo exercitar-se ao sol – seus poderes eram menores durante o dia, mas o sol não os machucava, no máximo incomodava e excitava em certos momentos – e terminar de ajeitar a mochila onde guardava um laptop roubado. Na memória daquele computador, todos os livros de sua antiga biblioteca, mais os tomos arcanos de Raven Lake, escaneados sem maiores problemas. A memória do aparelho parecia sedenta daqueles dados. Com certeza, o computadorzinho estava melhor em suas mãos do que nos daquela mulher na beira da estrada, que pedia carona.

Às vezes Belin se arrependia daquilo, como se arrependia de não ter cortado ainda seus cabelos, que a cada noite a incomodavam mais. Os dois arrependimentos tinham o mesmo peso. Se a mãe de Belin, dona da maioria dos originais daqueles livros, soubesse o que andava pela mente e alma de sua filha (será que ela ainda era filha daquela mulher que morrera há tantos anos?), diria que a balança moral de Belin estava totalmente desequilibrada. Belial responderia que Belin estava agora além da moralidade convencional – às vezes o vampiro parecia propenso a uns discursos prontos, que irritavam um pouquinho Belin, mas era só aquilo que a incomodava, tudo o mais a deliciava e a fazia não pensar em perigos, riscos, mudanças, consequências…

Belial terminou sua série de abdominais, levantou-se e pegou Belin nos braços, que havia acabado de pôr a mochila nas costas, beijando-a profundamente e, depois de morder os lábios da vampira, empurrou-a e gritou:

“Vamos lá! Veja se consegue me pegar…”



UM MÊS E MEIO ANTES …

“Quem poderia ter me seguido?  Quem saberia deste lugar?”

Belin acordou tremendo de frio na beira do precipício, o sol nascendo por trás das montanhas e seus primeiros raios começando a cair quentes sobre a pele dos dois amantes. Primeiro, teve aquela impressão paranoica, vinda de algum sonho ou pesadelo, de que alguém a havia seguido até aquele lugar onde costumava ler, e a surpreendera agarrada com aquele estranho, ambos seminus e suados, saídos de uma madrugada deliciosa e selvagem. Belin começou lentamente a entrar num estado de pânico que nunca havia sentido antes.

Belial a observou intrigado, mas não se mexeu. E para piorar as coisas, o sol. Semierguida, ela tentou fugir do sol e daquela presença que os observava, mas seus músculos um tanto cansados não lhe obedeciam direito. Olhos azuis a fitaram, preocupados, e a mão de Belial, que um dia se chamou André, lhe segurou o ombro com firmeza.

“Calma. Calma. É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique calma. Eu devia ter avisado. Respire fundo, vai passar se você aceitar que agora é outra pessoa. Não é mais humana, mas o sol não consegue te ferir! Sua verdadeira natureza se revelou, será que não percebe?” A moça agarrou-se a Belial com força, os olhos fugindo do sol nascente.  Belial continuou falando, já que Belin a princípio não conseguia responder nada:

“É só um reflexo. Não é real, pelo menos não aqui em seu mundo. Tenha calma, respire fundo, já disse que o sol NÃO PODE TE FERIR! Sua pele é ainda a mesma, minha querida, sua natureza só mudou por dentro, acha que o poder ia te deixar tão desprotegida durante metade do tempo? Vamos, respire fundo, isso, e com mais calma, perceba que seu corpo não está morto como sua mente quer te enganar… a noite que passamos não prov...” Belin o interrompeu e cobriu a boca do vampiro com a mão, sussurrando:

“Calaboca, calaboca… shhh… ela vai nos ouvir.”







FRAGMENTO UM

DIONÍSIO AUTRAN ERA UM HOMEM COMO QUALQUER OUTRO. Um dos poucos defeitos que tinha (mas, espere aí, se era um homem comum, então devia ter muitos defeitos! Mas refiro-me a defeitos assumidos diante dos outros) era ser um fumante inveterado.

Mesmo que lhe pedissem para parar de fumar dentro de casa ou do carro, ele continuava. E foi assim que um dia ele corria pela estrada, fumando enquanto dirigia, sozinho porque sua namorada havia se enchido do fedor de nicotina fortíssimo que impregnava o carro. E para piorar, uma dor de cabeça atroz.

Não sei se um dos outros poucos (poucos?) defeitos de Dionísio Autran era ser azarado – mas com certeza aquilo foi um grande azar: enquanto Kronos, o Imortal Maldito, entrava no matagal à beira da estrada e cavava um buraco buscando o esquecimento desta vida, Dionísio passava de carro e jogava um resto de cigarro aceso justamente sobre a poça de óleo que o carro de Kronos, parado no acostamento, derramava com uma certa urgência.

Um estrondo correu pelo céu, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos esverdeados brilharam no escuro, uma tentativa de possessão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, uma dor de cabeça atroz, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade seguia seu rumo, inquieta em seu sonhos despertos, e ávida de sua própria existência, enquanto mais um ovo de Vulto Vulpino chocava de maneira imprevista, ávida de sua própria existência.

Abrindo a porta da ruína que fora o carro de Dionísio Autran, saiu … apenas Dionísio, pegando fogo, seus olhos esverdeados brilhando mais forte que as chamas da explosão, e junto com a porta do carro abriu-se a porta para o paralelo, expulsando Dionísio, o Andarilho, para uma das autoestradas que corriam por aquela dimensão paralela.

Dionísio sabia que estava ferido, mas também sabia que era um trapaceiro – e sendo filho de Kronos, o Maldito, empurrou seus próprios ferimentos fatais para frente… no próprio tempo… sabendo que tinha que passá-los adiante, gerar mais um Vulto, e esse Vulto que lidasse com as consequências do nascimento dele, Dionísio. Uma cruel aplicação do princípio dos filhos pagando pelo pecado dos pais.

Dentro de si, da mesma forma que em Kronos, ele SABIA que haviam algumas sementes que, invadindo uma alma humana, poderiam brotar como outros Vultos – e Vultos viriam do além da Espiral Sem Nome, tomariam um novo nome e teriam poder, como acontecera agora mesmo com ele. A necessidade – em grego, ananke – sobrepujou Dionísio e tornou-se desejo, desejo de procriar e gerar. Mas havia também o medo de que o Vulto gerado pudesse se voltar contra ele, e buscar vingança.

E, em sua alma de Vulto, veio a imagem de Lívia, cabelos ruivos e encaracolados envolvendo um rosto belo, sensual e angustiado.

Houve um momento em que o desejo superou o medo, mas esse momento foi embora.  E ali, paralisado no meio da autoestrada, Dionísio se perguntava o que fazer.  Como não confundir aquele instante de paralisia com indecisão?  Mas, se havia um traço de personalidade que pouco habitava a alma de Dionísio, era a indecisão.  O que ele sentia, ali parado como se esperasse a chuva despencar sobre seu corpo e alma, era apreensão.  Ansiedade.  A apreensão do conhecimento.  Ele sabia, conhecia, e conhecendo, tinha poder.  Mas esse poder não lhe dava – ironicamente – o direito de fazer o que até há pouco estava desejando fazer.  Certamente, o arrependimento viria, tão certeiro quanto a flecha de um Cupido.




FRAGMENTO DOIS

COMO ELA QUERIA CORTAR O CABELO, deixá-lo curtinho como o da mulher que pedia carona na estrada. Belin lembrava-se perfeitamente do jeito daquela mulher: devia ter uns vinte e oito anos, ainda não podia ter passado dos trinta … cabelos curtos num penteado excitante, de mechas ousadas e arrepiadas, deixando a nuca exposta. E Belin tinha uma bela nuca, ainda mais excitante que a da mulher que ela e Belial roubaram no meio da estrada… o que significava que ficaria ainda mais excitante que sua vítima.

Desejar o que é dos outros – antigamente, Belin teria considerado isso errado. Mas, de qualquer forma, aquela mulher parecia sorrir quando os dois aceleraram o carro levando a mochila do laptop; e imitar um corte de cabelo não era, na verdade, um roubo. Então, tudo bem. Ela podia empurrar quaisquer arrependimentos para a frente… no próprio tempo.

A'arab Zaraq, uma ninhada de Vultos Vulpinos. Depois de escanear todos os livros, os de Raven Lake e os de sua própria mãe, Belin selecionou vários trechos e diagramas que indicavam a grande, suja e labiríntica cidade onde quatro autoestradas convergiam como numa encruzilhada… ali se daria o Princípio das Sombras, o reunir de uma a'arab zaraq. Assim orientavam os tomos de Raven Lake, seus trechos copiados e colados sobre o mapa da área ao redor da grande cidade.

Um dos tomos também falava de Kronos e Nemesyn, do primeiro casal de vampiros; falava como Kronos baniu Nemesyn para a Espiral Sem Limites após uma briga entre os dois; e de como esse ato abriu as portas para todos os outros Vultos Vulpinos, dispostos a vagar pela terra por algum tempo, exultar em suas novas máscaras e depois retornar à Espiral, para mais tarde serem chocados de novo por outros Vultos, repetindo eternamente esse ciclo… tudo enquanto Kronos não conseguia se livrar de seu corpo hospedeiro, um verdadeiro imortal, um verdadeiro imortal maldito.

Não havia nenhuma profecia naqueles tomos que mostrasse como Kronos poderia ser liberto de sua maldição, nem como seu poder imenso poderia ser roubado – mas Belial achava que havia um maneira.

Belin achava que aquela maneira era como andar pelas bordas de um precipício, mas guardava seus medos dentro de si mesma.






FRAGMENTO TRÊS

ENTÃO ERA TUDO VERDADE. O MISTÉRIO. PARTIDO EM DOIS. Uma parte era aquele Mistério realmente roubado de Astarte, ou Shub-Niggurath, ou Ereshkigal, não importa, era a mesma vampira; a outra parte era algo que já fez parte de um outro vampiro – mas não um vampiro como os Vultos, e que não existia na mesma realidade que Belin.

Ridículo, história ridícula. Foi o que ela pensou a princípio.

Tudo que Belin precisava era se livrar dessa história, e ela só conseguia fazer isso – temporariamente – ao se alimentar. Sangue. Emoções. Segredos.

A estrada se estendia até o horizonte, e do horizonte para aquela cidade grande e suja, e Belin sabia que, se seguisse para o lado oposto, encontraria sua pequena cidade, esperando por ela, a casa fechada como nunca esteve antes. Pelo menos até que começassem a investigar o desaparecimento dela, de André e sua mãe Eleonora. Mas ela preferia deixar esses problemas para depois, empurrá-los para o futuro, porque a estrada exercia um fascínio poderoso – talvez mais poderoso que o que Belial exercia sobre ela.

Postos de parada na estrada, como aquele onde ela estava, eram perfeitos para o que ela pretendia: um hotelzinho mixuruca, um posto de gasolina, um bar. Enquanto Belial terminava de escanear os livros no hotel, ela se alimentaria sem maiores problemas.

Não, não no bar. O posto de gasolina era mais adequado: uma loja de conveniência, rapazes parados com seus carros tocando músicas, vindos de uma cidade próxima para farrear e fazer pegas. Porque tinha sempre que cair naquele esteriótipo de mulher fácil e sensual, quando se é uma vampira? Talvez porque seja mais fácil caçar assim. E talvez também porque ela se sentia extremamente sensual ao agir assim. Às vezes, sentia-se mais excitada do que quando estava com Belial.

O rapaz musculoso não estranhou quando ela pediu que eles fosse para trás do posto, após o primeiro beijo. Lá ela a tomou nos braços, e ela sentiu a força de seus braços … e também sentia, quase que automaticamente, que ela podia ser muito mais forte que ele. Aquele rapaz – Luciano era o nome – levara alguns anos para ganhar aquele físico, malhando muito e tomando alguns esteroides, mas não o suficiente para lhe fazer mal à saúde… tudo para ser mais forte que os outros, e atrair a atenção das mulheres. Um menino rejeitado pelas meninas, e perseguido pelos outros garotos, ainda se escondia dentro dele. Mas aquilo que alimentava Belin era sua força de vontade, sua vontade de ser melhor que os outros, mais forte, um exemplar atraente da espécie humana.

Em Belin, aquilo se traduzia no fato puro e simples de que ela era mais forte que ele, apesar de seus músculos não terem crescido – pelo contrário, ela sentia-se, e era, muito mais feminina que minutos atrás, o cheiro de mulher deixava Luciano louco, aquele cheiro vindo do prazer que ela sentia ao nutrir-se dele, e da própria atratividade que Luciano exalava, que era roubada por Belin. Luciano sentia-se fraco diante da vampira – e pensou que aquela mulher era tão linda que o deixava meio com os pneus arriados, não estranhando aquela sensação de fraqueza ao olhar fundo nos seus olhos (eram quase púrpuras, pensou o rapaz) enquanto se beijavam de olhos abertos.

Aproveitando o fascínio idiota do rapaz por ela, ela segurou forte na cintura de Luciano, e exigiu – aquilo ficou claro por sua linguagem corporal, seus movimentos dominantes e lascivos – que ele ficasse quieto para que ela se aproveitasse dele. E, é claro – era inevitável – ele deixou. Ela praticamente rasgava a camisa de Luciano enquanto lambia o pescoço do moço, a língua correndo com cada vez mais força, até que a excitação do drenar fosse tanta em Belin, que todos os seus dentes tornaram-se afiados, mais afiados, prontos para rasgar aquele pescoço.

Ela nunca havia matado ninguém até aquele dia. E sabia que um dia seria necessário – porque então não treinar com aquele rapaz? Foi o pensamento que lhe correu pela mente. Não seria delicioso sorver sua morte? E o que viria com aquela morte? Que coisas poderiam ser drenadas no momento terrível da agonia final? E que quantidade enorme de sangue ela poderia provar … cinco litros de sangue, não era isso que diziam que era a média numa pessoa? A gula, a sede, quase a sobrepujava.

Mas ela não conseguiu – parou de lamber aquele pescoço, soltou o torso de Luciano, e ele olhou espantado para Belin… e mais espantado ficou, quando ela começou a balbuciar, “Vá embora… rápido…” e percebeu que os dentes da garota tão linda que estava pegando eram afiados como os de um animal, não, afiados como as presas de um monstro!

Belin levou a mão aos lábios, instintivamente, ao perceber o terror tomando conta de Luciano – e sabia que agora não tinha jeito. Teria de matá-lo, ou ele poderia dar a língua nos dentes. O moço tentou sair correndo, mas o braço aparentemente delicado, mas terrivelmente forte, de Belin cortou sua fuga. Antes que conseguisse gritar, sua garganta foi dilacerada por presas, sim, por presas afiadas como as de um monstro…

O gorgolejar do sangue em sua garganta, sangue roubado do qual ela não precisava para sobreviver, era tão intenso, tão visceral, que Belin esqueceu qualquer culpa por aquela morte, pelo menos naquele instante. E embora fosse prudente que o moço não fosse drenado até o fim (porque cadáveres exangues chamam bastante atenção!), todos aqueles cobiçados cinco litros foram sugados com força, aquela força também roubada, e quando o cadáver de Luciano desabou no chão, Belial sentia como se tivesse tomado um porre e uma feijoada, tudo na maior pressa do mundo.

A sorte – aquela sorte incomum que sempre protegera Belin e que parecia aumentada desde sua transformação – fez com que ninguém fosse atrás do rapaz naquele momento, nem naquela noite. E a sorte foi grande, porque se poucos aceitariam um monstro em forma feminina, lambendo os lábios correndo sangue, lábios entreabertos exibindo dentes afiadíssimos, e um cadáver recém-assassinado jogado no chão do lado da garota ajoelhada, atrás de um posto de gasolina de beira de estrada, menos pessoas ainda aceitaram em são consciência que o cadáver – aquele óbvio cadáver de garganta dilacerada – sorrisse, começasse a falar e declamar poesia…

E se Belin começava a sentir horror pelo que tinha feito, um horror ainda maior a tomou quando ouviu o que o cadáver dizia, lhe fez perguntas de volta e as respostas – segredos – vinham diretas como os raios do sol… e em meio àquilo tudo, a vampira sentia como se caminhasse pela beira de um precipício…






TERCEIRA ITERAÇÃO

UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, mas os padrões foram interpretados de forma errada, as vozes foram mal ouvidas e o estrondo soou à toa. Dois olhos vermelhos brilharam no escuro, a união de duas realidades, duas explosões, poças de óleo numa pista de carros, dois acidentes, dois homens andando pelo matagal, um homem cavando um buraco de lama, o outro se aproveitando da terra fofa para cavar menos, vários carros achatados largados pela pista, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade desperta no meio de seu sono, levanta para esvaziar a bexiga, e logo volta a dormir apesar da noite tão tempestuosa…

Belin corria pela avenida principal da cidade labiríntica, e Belial estava quase a alcançando. Ela expunha suas presas sem medo, porque ninguém as enxergaria, naquela velocidade com que corria. Nem ninguém enxergaria seus olhos brilhando tão púrpuras, e ela sentia-se fora do controle, mas como quem corre seguindo trilhos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava suas capacidades sobre-humanas, mas Belin acolhia o sol, o calor, a sensação de queimadura na pele, aquela quase-dor, quase-prazer…

Então, aconteceu. Ela corria tão rápido que o tempo parecia parar. O tempo parecia ter um gosto, um sabor, porque ela sentia o sabor do tempo em sua língua e presas. Não era mais o vento que ela cortava em sua corrida: era o tempo e o espaço. Belial ficou para trás e do grande viaduto à frente, caiu uma forma… como uma menina, uma mulher caindo para a morte. Era um vislumbre translúcido… uma possibilidade não-concretizada… e tão necessária. Belin, seguindo um puro instinto, saltou no ar e agarrou aquela forma como se sua vida dependesse disso.

Os olhos da aparição feminina brilharam púrpuras, e Belin sentiu toda aquela energia carregada e acumulada na forma invadir seu corpo, cair por dentro de sua garganta, queimando, e deixando aquele sabor do próprio tempo a penetrar.

Em seus ouvidos, latejava aquela voz que um dia Belin ouvira da boca de uma de suas vítimas mortas: “Eu sou Nemesyn, eu sou Ananke, eu sou Astarte, eu sou Belin, eu sou você e sou o Todo.” A sensação, a descarga orgásmica daquela essência a se reunir a dela, era como da vez em que Belial implantara em Belin uma parte de Astarte – mas bilhões de vezes mais forte. Era cadenciada. Era sincopada.  Era insana, cuco, cuco, cuco… como um coração acelerado, tonto de dor e prazer, que cantava uma canção com seus batimentos.

Mesmo a apenas cinquenta metros de distância, Belial não conseguiu perceber nada – apenas viu Belin se jogar no ar e cair no chão.

A cacofonia nos ouvidos de Belin começou a diminuir, e se esvaiu com uma última frase, “Adormecerei dentro de você, até o momento certo chegar…” Belial estendeu a mão para sua consorte e a ajudou a se levantar, perguntando:  “Que é que aconteceu?”

Mas Belin não conseguia responder.




MEIA HORA ANTES…

Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma colina específica, onde ela podia se recostar num estranho monumento – um menir, ou outro tipo de pedra ereta – e ler trechos dos vários livros que trazia. O monumento era a razão do tombamento daquela área, tão próxima à vila, mas tão selvagem. Quase tão selvagem quanto ela.

Aquela intuição selvagem que a tomava quando lia os trechos dos tomos de Raven Lake a assaltou de novo.  Era uma intuição que ela sabia que vinha de certos segredos que ela havia roubado, e de segredos que haviam sido roubados para ela. O poder de Astarte. As palavras de Nemesyn, saídas de um cadáver e numa visão de beira da estrada. Quando ela cometeria um erro? O que diferencia um erro numa tomada de decisões? Só o prazer da vida pode julgar… e ela estava tendo muito prazer.

Lá embaixo, na frente do hotel onde estavam hospedados, Belial se exercitava como se os dois não tivessem acabado de fazer sexo durante seis horas. Belin também não sentia nenhum cansaço, nada que anuviasse sua mente frenética, que quase ia além dos portais do paralelo. As letras dispersas nos trechos dos livros a impressionavam… e em algum momento ela conseguiu novos dados, ao escanear de novo um dos tomos obscuros que resistia bravamente à digitalização. Ali estava, o próprio nome da cidade ou bairro no mudno paralelo: Raven Lake.

As letras se embaralharam diante de Belin e ela enxergou algumas letras a mais…  em vez de RAVEN LAKE, leu CRAVEN CLARKE.

Não havia um bar com esse nome na cidade?

Belin fechou o laptop, desligou o scanner, e resoluta desceu as escadas, gritando para Belial e passando correndo por ele:

“Vamos lá! Veja se consegue me pegar…”



UM MÊS E MEIO ANTES …

“Essa Belin.  Onde está ela?  Não foi ela que sangrou teu lindo pulso, coisa que só eu poderia ter feito?  Ahhh … não me responda.  Só me leve até ela.  Não sei porquê, mas desconfio que ela não é tão fraca como você… e deve estar com aquele que vim buscar, o fugitivo.”

A voz feminina soou em meio aos sonhos de Belin, que acordou assustada, tremendo de frio na beira do precipício, o sol nascendo por trás das montanhas e seus raios começando a cair quentes sobre a pele dos dois amantes – Belin e Belial, ou se esta cena ocorresse um dia antes, Belin e André. Belin começou lentamente a entrar num estado de pânico que nunca havia sentido antes. Levantou-se de súbito, nua na beira do abismo.

“Calma! Calma!” gritou Belial. “É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique cal…” Mas gritar não adiantou muita coisa. Belial era rápido, mas Belin era – para sua surpresa – mais rápida ainda. E sim, ela se jogou do penhasco.

Belial lutou contra as emoções humanas que o tentavam paralisar e presenciar aquela queda sem fazer nada, só entrar em desespero; e correu depressa, dando a volta pela colina, para chegar até o corpo caído de Belin o mais rápido possível. E lá estava ela, o corpo nu lacerado pelas pedras e pelo impacto, levantando-se devagar… bem mais devagar que os ferimentos, que se fechavam numa celeridade inacreditável.

Belial estendeu a mão para sua consorte e a ajudou a se levantar, perguntando:  “Que é que aconteceu?”

Mas Belin não conseguia responder.



FRAGMENTO QUATRO (SUPOSTAMENTE, O FINAL)

“Maldito assassino! Nós vamos te pegar.”

Craven Clarke, um bar à beira da estrada. Belin e Belial esperavam algum sinal, uma movimentação, numa curva da rodovia, a uns duzentos metros daquele bar e boate, onde já haviam estado algumas vezes, preparando o terreno. E lá vinha Dionísio, acelerando num carro negro – provavelmente roubado. Atrás dele, os amigos da moça que ele havia assassinado – corressem as coisas de modo um pouco diferente, e ela se chamaria Ananke; mas agora era apenas Lívia, morta no chão da boate.

Dionísio acelerou e entrou na pista, Caio e Tiago pegaram o carro e começaram a persegui-lo, estavam muito rápidos, de vez em quando precisavam frear bruscamente por causa de algum carro que vinha na pista contrária, logo à frente, numa curva fechada, um caminhão que vinha na outra pista não conseguiu frear a tempo, o carro em que Caio e Tiago estavam rodopiou várias vezes, batendo na traseira do carro de Dionísio, que foi jogado contra uma árvore, logo em seguida o outro carro também bateu na mesma árvore e uma enorme explosão iluminou toda aquela área, na pista o caminhão tombava se arrastando por vários metros, deixando uma imensa mancha de óleo.

Era o sinal que o casal de vampiros esperava.

Dionísio saiu do meio das chamas, sua pele levemente queimada, andou alguns metros no matagal e então encontrou uma enorme poça de lama onde cavou e satisfeito por ter conseguido o que queria, se enterrou profundamente, fechou os olhos num misto de dor e prazer, era hora de descansar, havia muito o que fazer ainda naquela cidade.

Belin e Belial puseram-se parados a poucos metros de onde o acidente havia acontecido, ela olhou para Belial num tom meio desconfiado:

“Você acha que ele percebeu algo?”

“Não creio. Mas só teremos certeza quando chegar a hora certa.”

Dentro do matagal, o silêncio, prestes a ser quebrado. Belin abraçou-se à Belial, sentia-se protegida junto dele, mas tinha medo do que ele era capaz para ter o que queria. E dentro de sua cabeça, ressoavam várias vozes femininas, falando da queda de Kronos, do fim da maldição, e da falha no plano de Belial…

As duas sombras Vulpinas sumiram em meio a uma densa neblina. E se Belial não tomasse cuidado, muito em breve teria muito medo do que Belin também seria capaz…



quarta-feira, 19 de outubro de 2011

THE CHALLENGE FROM CTHULHU CHICK



And then, from the top of the gambrel, we saw it. That singularly hideous thing, mentioned in the immemorial Pnakotic Manuscripts and the blasphemous Book of Eibon, manifested again, this time as a daemonic iridescence festering at the horizon, which indiscribable stench drove us to an ululating madness in less than one minute. The foetid, amorphous creature was one of the eldritch masks of Nyarlathotep, the decadent and swarthy Messenger from Beyond. From that unnamable veil of macabre effulgence of the Outer, we could feel the abnormal and loathsome influence of Azathoth, Yog-Sothoth and Shub-Niggurath's accursed coupling.
   
    It was something no mortal man could behold; those few who resisted its power and rose from the charnel of their own minds, a nameless and antidiluvian comprehension would struck them like a thunderbolt sent from the gibbous moon. I am now one of those chosen; the others fainted or are dead from their own unutterable self-loathing. Now I am the stygian darkness itself, ruling my own private and shunned hyperdimension, all-seeing in a cyclopean palace at the center of this antique plane, served by the squamous and mutant monsters that, aeons ago, long before the mi-go existed, built the towers of Yuggoth.
   
    Such a pity that my old friends from the Miskatonic Valley have now to deal with my sad, comatose husk. Maybe I visit some night, in dreams, if someone in Kingsport dares again to offer them shelter.


Este texto em inglês foi minha resposta ao desafio emhttp://www.reddit.com/r/Lovecraft/comments/fvtbm/quick_challenge_idea_write_one_lovecraftian/ baseado na contagem de palavras lovecraftianas em http://cthulhuchick.com/wordcount-lovecraft-favorite-words/anunciado aqui pela http://www.facebook.com/cthulhuchick

------------------------------- Minha própria tradução para o português:






E então, do topo do telhado, a enxergamos. Aquela coisa singularmente hedionda, mencionada nos imemoriais Manuscritos Pnakóticos e no blasfemo Livro de Eibon, manifestou-se novamente, desta vez como uma iridescência demoníaca infestando o horizonte, cujo fedor indescritível nos levou a uma loucura ululante, em menos de um minuto. A fétida e amorfa criatura era uma das máscaras místicas de Nyarlathotep, o moreno e decadente Mensageiro do Além. Daquele véu inominável de esplendor macabro do Exterior Cósmico, pudemos sentir a influência anormal e repulsiva do acasalamento de Azathoth, Yog-Sothoth e Shub-Niggurath.

    Era algo que nenhum mortal poderia suportar; os poucos que resistem a seu poder e ascendem da câmara mortuária de suas próprias mentes, estes são atingidos como se por um raio vindo da lua gibosa. Eu agora era um desses escolhidos; os outros desmaiaram, ou morreram de um horror impronunciável de si mesmos. Agora eu sou a própria escuridão estígia, governando minha hiperdimensão privativa e reclusa, onisciente num palácio ciclópico no centro deste antigo plano, servido por monstros escamosos e mutantes que, eras atrás, muito antes dos mi-go existiram, construíram as torres de Yuggoth.

    É uma pena que meus velhos amigos do Vale do Miskatonic tenha agora de lidar com meu triste corpo comatoso. Talvez eu os visite alguma noite, em seus sonhos, se alguém em Kingsport ousar vez dar-lhes abrigo mais uma vez.




terça-feira, 18 de outubro de 2011

MISTÉRIOS DO HORIZONTE

Por
Neith War e The Grey Knight, escrito de 26 de outubro de 2010 a 25 de janeiro de 2011





Houve um momento em que o desejo superou o medo, mas esse momento foi embora.  E ali, paralisado no meio da autoestrada, Dionísio se perguntava o que fazer.  Como não confundir aquele instante de paralisia com indecisão?  Mas, se havia um traço de personalidade que pouco habitava a alma de Dionísio, era a indecisão.  O que ele sentia, ali parado como se esperasse a chuva despencar sobre seu corpo e alma, era apreensão.  Ansiedade.  A apreensão do conhecimento.  Ele sabia, conhecia, e conhecendo, tinha poder.  Mas esse poder não lhe dava – ironicamente – o direito de fazer o que até há pouco estava desejando fazer.  Certamente, o arrependimento viria, tão certeiro quanto a flecha de um Cupido.




Longe dali, num barzinho super badalado, Lívia se divertia bebendo com as amigas. O som estava muito alto, um psy trance cheio de energia, os corpos movimentavam-se como um oceano de carne humana, alguns, alteradíssimos pelo uso de entorpecentes, dançavam freneticamente ao som alucinante.

Era a primeira vez de Lívia naquele bar, suas amigas haviam insistido para que fosse, achavam que ela precisava se distrair um pouco. Lívia olhou para o teto do barracão onde o bar era instalado, sentiu a cabeça girar, abaixou-se entre a multidão e com as cabeças entre as pernas, arrependeu-se de ter misturado a bebida com o alucinógeno oferecido por um rapaz que conheceu lá, nunca havia feito uso de drogas em sua vida, e agora sentia-se estúpida por estar tão mal. Abaixou ainda mais a cabeça e sentiu que ia vomitar, seu estômago doía absurdamente, com as mãos apertando a barriga levantou-se com dificuldade e foi em direção ao banheiro, as pessoas pareciam loucas dançando aquele som ensurdecedor, foi difícil passar entre elas sem levar cotoveladas e empurrões.

Quando chegou ao banheiro, ele estava vazio, suspirou aliviada por poder ficar um pouco sozinha. Molhou as mãos na água da pia e passou na testa, e com as mãos apoiadas na borda da pia, fitou seu rosto cansado. Apesar da maquiagem estar toda borrada ainda podia-se ver que Lívia era uma linda garota, algumas mechas cacheadas caíam suavemente em sua face, o contraste dos cabelos vermelhos na pele branca a deixava ainda mais sensual, seus olhos eram de um azul violeta e expressavam uma profunda tristeza por ter sido tão tola, devia ter ficado em casa. Suspirou resignada e mais uma vez molhou o rosto.  O banheiro era sujo e úmido e a fazia lembrar-se dos banheiros de filmes de terror, riu alto quando pensou nisso e falou para si mesma, “Lívia… você realmente está muy loka, amiga!”

Saiu do banheiro e foi direto para os enormes sofás dispostos ao redor da pista de dança, agradeceu mais uma vez por achar um local para se sentar, a maioria das pessoas ainda dançava freneticamente, não se cansavam de repetirem os mesmos passos música após música. Fechou os olhos por um instante, e então ouviu quando a música eletrônica deu lugar à uma outra música, Change, do Deftones, abriu os olhos assustada com a mudança brusca e teve uma grande surpresa: estava sozinha no imenso salão, esfregou as mãos nos olhos para ter certeza de que estava bem acordada, e quando olhou novamente ao redor, percebeu que o local todo estava coberto por um denso nevoeiro, as luzes coloriam de forma bruxuleante aquela névoa, a música parecia entrar em seu corpo. Lívia sentiu que seu coração iria explodir, tamanha era a força com que batia.

Do meio da névoa surgiu um Vulto que caminhava lentamente em sua direção, sentiu a respiração falhar, estava horrorizada com aquela situação, o medo dominava sua mente, e então, encolhendo-se toda no canto, colocou as mãos no rosto e começou a gritar desesperadamente, sentiu que várias mãos tentavam controlá-la e tentava afastá-las gritando ainda mais alto, então ouviu a voz familiar, era Vanessa, com uma cara assustadíssima.

“Lívia??? O que houve??”

Lívia olhou meio sem saber o que dizer, a música psy irritante continuava a tocar normalmente e não havia névoa alguma, olhou meio atordoada para a amiga e disse, “Só me leve embora daqui, Vanessa...”

Milhares de vozes se calaram de uma só vez, mas a cabeça do Guardião do Poço continuava em silêncio, empalada numa lança erguida contra os céus de cor azul, quase negra.  Raios cruzaram os céus como veias elétricas e fugazes, mas o que restava do Guardião do Poço não se abalou nem disse nada, nenhum oráculo, nem súplica: só seu olhar que me trespassava mais que a lança que o matara.

Dionísio não tinha culpa dessa estranha sinalização, postada no centro de uma encruzilhada que encontrou andando pela rodovia sinuosa, ter sido morta há milhões de anos e ainda nutrir rancor contra quem lhe fizesse perguntas.

Deve ser a chatice do serviço, pensou Dionísio.

Olhou em redor e só enxergou as brumas escaldantes ficarem mais densas, quase ultrapassando os limites do meio-fio.  Não era coisa para qualquer um, andar pela estrada que se esconde por detrás do mundo, a pé, e ser tão efetivo como uma pessoa de carro pelas autoestradas do mundo material.

O próprio tempo era diferente ali, e era muito difícil entender coisas como pontos cardeais, referências espaciais e linhas retas.  O melhor era simplesmente relaxar, andar e esquecer todas essas noções, porque se elas se aplicavam ali, seus significados eram diferentes.

Dionísio suspirou e virou a cabeça para os três caminhos que partiam do poste do Guardião.  Parecia que este não iria cobrar pedágio, mas deveria cobrar caro por informações, só que saber isso não adiantava muita coisa, porque ele ficava mudo até que a oferenda correta fosse apresentada.

E Dionísio não tinha a menor ideia do que era correto.

Em mais de um sentido.

Mas ele tinha uma vantagem, justamente por causa disso: ele era um dos Vultos Vulpinos, um Vampiro Vagante, uma sombra de olhos faiscantes, vinda das profundas do Outro Lado, passada além do Portal do Paralelo para vestir a mente e o corpo de um ser humano que um dia se chamou Dionísio Autran.

Agora ele era só Dionísio, e tinha pressa, embora muita paciência.

A chuva começou a cair, primeiro fina e depois dando sinais que chegaria a uma torrente, ameaçando esmagar quem quer que estivesse exposto na encruzilhada.  Dionísio ignorou o olhar ríspido da cabeça de olhos brilhantes, e adiantou-se até um das saídas, e não aquela por onde veio.

As brumas reagiram à chuva e ao viajante, o estrondo nos céus ficou mais alto, e foi mudando, mudando de tom e ritmo, de forma quase senciente.  Dionísio deu mais alguns passos, e o véu da passagem acariciou o seu corpo, que o sentia como duas músicas distintas unidas num só caleidoscópio sonoro.

Ali, ele não conseguia enxergar o que vinha à frente, onde ia dar, mas sabia que poderia ser visto por alguém azarado (ou azarada, quem sabe…?) o suficiente para isso.  Bom, azar para os outros, sorte para ele.




Naquela noite Lívia não conseguiu dormir direito, só conseguiu se sentir mais segura quando o primeiro raio de sol atravessou a veneziana e por isso, depois de um demorado banho deitou-se confortavelmente em sua cama.

Sua cabeça ainda doía um pouco, aquela imagem bizarra não saía de sua mente, a música, a névoa. E foi com estas lembranças que seus olhos se fecharam lentamente e então, quando o sonho já chegava para descansá-la, sentiu afundar na cama e a sensação de sufoco a fez debater-se, como se estivesse presa numa areia movediça, tentava gritar mas a voz não saía, a visão estava embaçada e sentia um cheiro estranho no ar. Viu-se num rio de sangue escurecido, milhares de corpos cadavéricos boiando á sua volta, sentiu nojo, e desespero, tentou gritar mas sua voz agora ecoava num tom agudo como se fosse o pio de uma coruja; de repente uma mão ossuda segurou sua perna e a puxou para o fundo, tentava nadar para a superfície mas era inútil, a “coisa” a puxava cada vez mais fundo e os corpos de olhos esbugalhados batiam contra seu corpo desfazendo-se deixando rastros de vermes ao seu redor, sem que ela esperasse viu-se frente a frente com uma criatura horrível, algo assustador que era muito pior do que todos os demônios de que já ouvira falar.

Soltou um grito e engoliu muito sangue, perdeu os sentidos, e então num impulso quase que mecânico, seu corpo virou-se na cama e Lívia vomitou algo parecido com lodo e sangue; continuava desacordada, com o corpo pendendo de lado enquanto vários espectros se aglomeravam ao seu redor sibilando e rindo diabolicamente.

Já faziam 10 minutos que Vanessa batia na porta da casa de Lívia sem obter resposta. “O que será que está acontecendo… não deveria tê-la deixado sozinha.” Vanessa deu a volta na casa, e forçando a porta da cozinha, conseguiu entrar, sabia que aquela porta estava quebrada e que Lívia apenas encostava um mesa para mantê-la fechada.

Subiu as escadas que davam para o quarto e quando chegou lá teve uma terrível visão: Lívia estava caída ao lado da cama em seu próprio vômito. Correu até ela e sacudindo-a gritava para que acordasse, Lívia abriu os olhos com dificuldade, e mal consegui distinguir quem estava à sua frente, sentia-se fraca e zonza.

Vanessa imediatamente pegou o celular e chamou uma ambulância.



O espaço tremulou à frente, borbulhando distorcido como um aglomerado de formas rodopiantes.  Dionísio havia ultrapassando a encruzilhada.  Suspirou, não de alívio, mas de uma sensação inesperada de cansaço: que impressão estranha era aquela, de que algo estava faltando?  Era como se sua essência houvesse ido parar de novo no Sheol, no Xibalba, no Hades, qualquer que seja o nome que os mortais deem a esse lugar que não é lugar.

Com aquele estranho peso no peito, como se de uma perda terrível, a sombra que vestia o corpo de Dionísio Autran se achou olhando para o espelho de um banheiro feminino.  Felizmente, sua chegada não foi seguida por gritos agudos, nem por um spray de pimenta no rosto.  Ainda bem mesmo, assim seus olhos verde-esmeralda, que chamavam a atenção daqueles que cruzavam o seu caminho, não sofreriam nenhum dano… por temporário que esse dano fosse, qualquer irritação ou ferimento ainda eram dolorosos.

Conforme caminhava para fora do banheiro, aquela sensação de perda foi se refinando, e a nítida ideia de estar atrasado cruzou a mente do Vulto.  Estava numa boate, e já deveria ser dia, porque não havia ninguém dançando na pista, o chão estava cheio de panfletos, sujeira, e até uma camisinha usada, e ninguém estava à vista, exceto alguém que costuma ser quase invisível, de tão ignorado: a faxineira que com seu carrinho apanhava o lixo e limpava a bagunça da noite anterior.

A moça de traços comuns levantou a cabeça na direção de Dionísio – estava abaixada, catando o esfregão que caíra no chão – e não enxergou nada, embora sentisse um leve aroma de almíscar, inédito naquele ambiente fedendo a cigarro.

Sem esboçar seu sorriso usual, o Vulto caminhou discretamente, mas passando direto ao lado da servente, incólume.  Mas que sorte, pensou Dionísio.  Que coisa melhor para roubar, que o dom da invisibilidade?  Para aquela mulher, aquilo talvez fosse um fardo, mas para ele, um mito vivo, era de uma utilidade tremenda, e um efeito muito maior e mais efetivo, ali no mundo de carne.  E até um dos três marcos do sol – que ele imaginava ser o meio-dia, pelo jeito – aquela mulher atrairia todo tipo de atenção, desejada e indesejada.  Boa sorte para ela …

O Vulto Vulpino caminhou pelas ruas, sem ser notado pelos cidadãos comuns que perdiam seu tempo, rodando como aves que ciscam por aquela cidade labiríntica, onde morava uma menina, talvez uma moça, talvez uma mulher, talvez uma centelha a despertar para um horizonte novo e cheio de sombras e sangue, chamada Lívia.


Lívia abriu os olhos e ficou alguns instantes imóvel tentando colocar as ideias em ordem. Sua cabeça estava um turbilhão, imagens e lembranças misturavam-se à fantasias.

Olhou para o sofá ao lado da cama de hospital e viu Vanessa dormindo, levantou-se e vestiu sua roupa, que estava em uma cadeira ao lado, pegou a bolsa e saiu do quarto sem nem ao menos se despedir da amiga.

Algumas horas mais tarde, Vanessa acordou assustada com uma enfermeira que a chamava.

“Moça, acorde” a enfermeira cutucava Vanessa incessantemente.

“Hã? O que está havendo, onde esta Lívia?” Vanessa ficou apreensiva ao notar que a amiga não estava na cama.

“Ah, a moça que estava neste quarto já foi embora tem algumas horas. Desculpe incomodar, mas vamos precisar deste quarto.”

Vanessa pegou suas coisas e saiu pensativa. Como Lívia podia ser tão ingrata? Nem lhe agradeceu por ter passado a noite ali com ela.  Magoada, Vanessa foi direto para casa, estava decidida a deixar Lívia se virar sozinha dali por diante.

À noite os amigos combinaram de se encontrar novamente no bar à beira da estrada.  Vanessa já havia bebido bastante e se lamentava para a turma dizendo o quanto Lívia era falsa e ingrata, nem retornara suas ligações. Nesse ponto Laura interferiu:

“Mas, Van… pense bem, Lívia anda sob forte estresse, imagine só, como você se sentiria se fosse a principal suspeita da morte de seu namorado?

Caio segurou a mão de Vanessa e a beijou.  “Você tem feito o que pode por ela meu amor, mas realmente é uma situação complicada, você mesma viu como ela ficou naquele dia em que a convencemos a vir para cá.”

Tiago emendou, “Ela nem se arruma mais, antes estava sempre bem vestida e radiante. Deve estar muito deprimida.”

Vanessa concordou, e suspirando, ergueu o copo para brindarem o fato de estarem ali reunidos, mas os copos pararam no ar, como se alguém tivesse apertado o botão de pause de um aparelho de DVD, as bocas entreabertas e os olhares incrédulos na direção da porta de entrada. No mesmo instante, o DJ colocava a música The Spy do The Doors.

Na porta, Lívia estava parada acendendo um cigarro, usava uma saia curta de couro preta e justíssima, uma blusa tomara que caia vermelha, os cabelos soltos, uma maquiagem forte nos olhos e um batom vermelho que realçava seus lábios carnudos. As sandálias de salto fino davam um balanço serpenteante ao seu corpo bem definido, conforme andava parecia deslizar pelo salão, os homens estavam feito lobos, devorando-a com os olhos.

Lívia sequer olhou para a mesa onde estavam os amigos, parecia uma outra pessoa. Caminhou até o balcão e sentou-se em um banco cruzando as pernas bem torneadas. Não demorou muito para que um rapaz se aproximasse e lhe oferecesse uma bebida, que Lívia sorrindo e esbanjando charme logo aceitou.

Vanessa surtou e queria de qualquer forma ir até lá e saber o que estava acontecendo, mas Caio a impediu. Estavam todos chocados com a cena mas os meninos acharam melhor apenas observar Lívia para ver o que ela pretendia, mesmo porque ela parecia nem ter notado a presença deles ali.

Lívia trocava olhares com o desconhecido, seus gestos insinuantes estavam deixando-o louco.  “Como é o teu nome?” perguntou enquanto acariciava a mão de Lívia.

“E isso realmente importa?” a garota respondeu enquanto descruzava as pernas lentamente e cruzava novamente.

Aquele movimento pareceu hipnotizar o rapaz, ele a desejava de uma forma assustadora. Lívia percebeu e sorriu satisfeita, terminou a bebida e o pegou pela mão arrastando-o para o banheiro masculino. Ele a seguia feito um cachorrinho.

Vanessa que via toda a cena ficou horrorizada, quis ir atrás mas foi impedida por Laura.

No banheiro, Lívia entrou em um dos vários sanitários e abaixou a tampa fazendo com que o homem se sentasse. Beijou seus lábios e depois afastou-se sorrindo.

Podiam ouvir a música que acabava de começar, Angels and Drugs de Christian Death. Lívia começou a dançar sensualmente, as mãos do rapaz percorriam suas curvas, ele estava extremamente excitado. Ela tirou a calcinha e sentou-se no colo dele que já estava com a braguilha aberta.

A música estava muito alta, seus corpos em êxtase, loucos por prazer. O homem deslizou as mãos pelos seios de Lívias e abaixando a blusa vermelha começou a chupá-los alternadamente enquanto a penetrava, Lívia movia seu quadril de forma intensa no colo do rapaz, os gemidos se misturavam com as batidas da música. Estavam quase gozando, quando ela parou e olhou para ele de forma estranha, seus olhos brilharam num tom violeta e isso fez com que ele congelasse de medo.

Ela enfiou as unhas na barriga do rapaz e fez um imenso buraco, ele gritava de dor e desespero mas seus gritos eram abafados pelas gargalhadas de Lívia e a música alta da pista de dança.

Lívia levantou-se e ajeitou a saia e os cabelos. O rapaz continuava gritando com as mãos tentando estancar o sangramento, ficou desesperado ao perceber que suas vísceras saíam e tentava, desajeitado, colocá-las para dentro. Lívia retocou o batom vermelho e encostou-se na beira da pia, de onde podia assistir a cena enquanto acendia um cigarro.

Vanessa estava inquieta na mesa, Caio teve medo de que ela brigasse com Lívia, já que estava bêbada e por isso resolveu ir até o banheiro ver o que estava acontecendo. Ao entrar no banheiro, Caio viu Lívia com um sorriso diabólico nos lábios e um rapaz em um dos sanitários gritando feito louco com as mãos na barriga.

Caio correu até ele e o sacudia pelos ombros. “O que houve? Porque está gritando desse jeito, está ferido?”

O rapaz tirou as mãos da barriga e já ia dizendo algo, quando viu que não havia nada, nenhum corte, nenhum sangue, nada.

Olhou desesperado para Lívia, que se mantinha imóvel como se nada visse, então começou a gritar com ela.

“Bruxa maldita!! O que fez comigo? Seu demônio!” levantou-se tentando ir na direção da garota, mas Caio o segurou, Lívia jogou o cigarro no chão, e sem olhar para Caio, ajeitou mais uma vez os cabelos e saiu do banheiro.



“Mistério” é uma palavra tão bela.

Inevitável não pensar nessa beleza, e no poder dessa palavra, ao vagar invisível pelas ruas da cidade onde vagara Kronos, o Maldito. Ele maculara tudo com seus rastros podres, pensava Dionísio. E ao mesmo tempo, o Mistério que envenenava o ar era tão belo, tão poderoso, tão intoxicante.

O Mistério no ar era como um fio de Ariadne, o vampiro parecia vagar a esmo, mas acabou entrando justamente onde deveria. Justo a tempo de não se encontrar com Lívia, mas a tempo de entrar num lugar terrível, na hora exata. Um hospital da periferia, desgraça institucionalizada, o caos imperava pelos corredores, e um vampiro invisível era algo tão adequado, que todos chegavam até mesmo a se desviar de Dionísio, para não se esbarrar nele. Inconscientemente. Aquela sincronicidade que move os humanos sem que eles percebam.

Lá fora o sol quase alcançava o zênite, quando Dionísio entrou, ainda sem ser visto, num vestíbulo da Unidade de Tratamento Intensivo. Duas pessoas pareciam velar uma moça acidentada, uma delas sentada numa cadeira encostada à parede, a outra também encostada na parede, mas em pé. A primeira era uma mulher digitando lentamente num laptop, os cabelos curtos num penteado excitante, os ombros nus cheios de pequenos cabelos cortados. A segunda era um homem alto, mas não muito, moreno e jovem. A mulher parecia ignorar a presença do vampiro, até que ergueu os olhos, que brilharam numa cor púrpura estranha, e voltou a baixá-los para a tela do computador.

O homem foi menos discreto e segurou o braço de Dionísio com uma força medonha, seus olhos faiscaram azuis, cheios de uma cólera celestial, e por um segundo o aperto foi tremendo, mas o homem percebeu os próprios olhos verde-esmeralda do vampiro e acalmou a pressão no braço do vampiro, mas não o soltou.

“Você é Dionísio.” era uma pergunta e ao mesmo tempo uma declaração.

“Você é Belial.” era uma zombaria e ao mesmo tempo um reconhecimento formal.

Ambos sabiam que aqueles nomes eram temporários, era sempre assim para todos de sua espécie… menos para Kronos, o Maldito. Dionísio se virou para a mulher sentada e repetiu o protocolo: “Você é Astarte.” A moça levantou a cabeça apenas o suficiente para responder: “Não, seu idiota. Meu nome é Belin.”

Dionísio riu baixo, virou-se para o outro vampiro e pediu, “Dá pra me soltar? Tem alguma coisa em você que está me incomodando.” Belial também riu, um pouco mais alto, e respondeu “Tudo nessa cidade deveria estar te incomodando, mas você é esperto o suficiente para não mexer comigo. E então, quais são os seus negócios nesses tempos estranhos?”

“Procuro uma presa,” respondeu o Vulto de olhos esmeralda, estampando um sorriso cínico. “Não estou conseguindo, me perdi pela cidade, isso nunca me aconteceu antes. Não sei por quê vim parar aqui, é uma vergonha.”

“Então pode esquecer,” falou o Vulto de olhos azul-cobalto, largando o braço de Dionísio. “Todas as presas que poderiam lhe servir devem ter sido tomadas pela passagem de Kronos, como esta meni...” Um grito de fúria e dor ecoou pela UTI, saindo das gargantas dos quatro naquele vestíbulo apertado, incluindo a menina hospitalizada. Sons, cheiros e um vislumbre macabro tomaram a mente deles: uma explosão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, dor, o desejo de esquecimento, prazer, sono.

Uma enfermeira puxou as cortinas do vestíbulo, assustada, mas Belin, a primeira a se recuperar do choque, virou-se para ela e disse numa voz firme e calma: “Volte para ao que estava fazendo antes, nos deixe em paz aqui e diga às suas colegas que tudo foi resolvido.”

“Essa cena aconteceu ontem ou vai acontecer hoje à noite?...” a voz trêmula de Dionísio soou baixinho. “Com Kronos, nunca se sabe” respondeu Belial. “Pelo menos ele vai dormir por um bom tempo agora.  Eu quase diria, coitado dele, mas é melhor não te dar mais detalhes, é sempre bom te ver ardendo de curiosidade.”

O olhar de Dionísio ficou meio desesperado: “Não faça isso comigo. Nós somos ladrões de segredos. Eu não quero lutar com você. Por favor.” Belial esperava impassível alguma reação, enquanto Belin balançava a cabeça em desprezo. O rosto de Dionísio mostrava algumas gotas de suor, escorrendo trêmulas. Lá fora, o meio-dia chegava, e uma mão diminuta, mas de garras afiadas, segurou o braço de Dionísio, no mesmo lugar onde Belial agarrara, pouco antes.

O rosto desfigurado da menina até pouco antes desacordada se contorceu num esgar de raiva, seus olhos se fixaram no vampiro hesitante e uma voz discordante saiu dos lábios finos: “Você é Dionísio. Eu sou Ananke, filha de Nemesyn.” A apreensão e ansiedade de Dionísio quase chegaram ao nível de pânico. A garota deitada ao seu lado era um Prematuro. Um horror ancestral que, mesmo sendo Vulto, devorava outros Vultos.

O casal de vampiros recuou um passo da cama, e a menina suicida que agora se dizia chamar Ananke recitou um cântico, uma história antiga declamada por Nemesyn, a primeira de todos os Vultos Vulpinos. O medo no coração inquieto de Dionísio foi se dissipando. Quando terminou o poema, a menina deformada tinha estranhas penas afiadas saindo de suas feridas, que não pareciam mais feridas e sim minúsculas bocas. Ela era um monstro muito mais chamativo que qualquer outro de sua espécie, era o que Dionísio sabia; sabia que beberia sangue não por prazer e divertimento, como gostavam de fazer todos os Vultos, mas por necessidade, um desejo quase sexual, tão grande quanto a necessidade dos outros Vultos de devorar segredos e emoções alheias … vontade que Ananke também imporia aos mortais, como qualquer outro vampiro. Ela era um monstro e era maravilhosa, Dionísio e os outros dois sentiam algo próximo do amor, que logo se desfez, quando ela falou numa voz mais composta: “Como há séculos, somos uma ninhada mais uma vez. Ele nos despertou e ele pagará por isso. Vá, corra agora, perca suas esperanças pelas ruas sem fim da cidade, pequeno Dionísio, e vai encontrá-las nas formas belas e cruéis de sua Lívia. Vá agora … AGORA!”



Havia uma sensação de perda no ar quando Dionísio saiu do quarto, era como andar novamente pelas vielas do paralelo, não tinha mais noção de tempo e espaço, de alguma forma, havia uma força oculta e forte que o guiava naquela dimensão sombria.

À sua frente um emaranhado de escadarias que subiam e desciam, uma densa névoa pairava naquele lugar, estava ficando cada vez mais confuso. “Mas que diabos!...” Dionísio mal acabou de pronunciar as palavras e foi sugado por um redemoinho saindo novamente no banheiro daquele bar de estrada.

Com as mãos trêmulas apoiadas na pia ele aos poucos foi recuperando o equilíbrio, olhou para o espelho e viu sua imagem borrada, logo acima um letreiro em Neon piscava, algumas luzes estavam queimadas, ele apertou os olhos para tentar firmar a visão e ler, aos poucos as letras foram ficando nítidas e então uma frase” Bar RAVEN LAKE” , esse nome soou estranho e familiar dentro de sua cabeça mas então percebeu as luzes queimadas e leu novamente “Bar Craven Clarke”

“Estranho…” Sua voz soou com um misto de dúvida e curiosidade.

O som que vinha da pista de dança do bar estava alto e agitado, o que significava que era noite, e por algum motivo ele sentia que estava prestes a encontrar o seu destino. Dois caras bêbados entraram no banheiro gargalhando, mas nem notaram Dionísio, falavam muito e riam demais. Dionísio manteve-se imóvel próximo à pia, sabia que eles não poderiam vê-lo, mas algo aconteceu, um dos rapazes esbarrou em Dionísio e logo depois dirigiu à ele um palavrão, o outro riu e comentou:

“Ih, esse cara aí deve estar muito louco, olha só os olhos dele…”

Saíram rindo do banheiro, Dionísio, ainda incrédulo, olhou seus olhos no espelho, o verde havia se transformado num vermelho vibrante, talvez fosse o contato direto com aquela película paralela na qual se encontrava. Respirou fundo e saiu do banheiro, a multidão e o som alto o deixava enraivecido, odiava aquela aglomeração humana nojenta, mas precisava encontrá-la, precisava de Lívia.

* * *


Quando Lívia saiu do banheiro, Caio correu atrás dela mas não conseguiu alcançá-la, viu quando Vanessa do outro lado do salão levantou-se com as mãos na cintura, apontando para o meio da pista de dança. Lívia dançava sensualmente ao som de Killing Moon, do Echo & The Bunnymen , Caio correu até a mesa onde estavam os amigos.

“E agora pessoal? O que vamos fazer?”

Nesse instante Dionísio viu Lívia, uma sensação de estranho conforto o invadiu, foi caminhando lentamente até ela, olhos fixos nas curvas marcantes do corpo da garota, quando chegou ao seu lado a música acabou, Lívia se virou e então os olhos dos dois se cruzaram, neste instante começava a tocar Mad World, de Gary Jules & Michael Andrews, o que indicava um pequeno intervalo para que as pessoas ali pudessem recuperar suas energias para a próxima seleção dançante, mas Lívia e Dionísio permaneceram na pista, olhos nos olhos, nenhum movimento brusco, foi Lívia quem quebrou o silêncio.

“Estava esperando por você...”

Dionísio sorriu, pegou-a pela cintura e então com seus corpos grudados dançaram,era como se nada mais ali existisse.

Vanessa estava fora de si juntou suas coisas e correu para tirar Lívia de lá antes que fizesse algo do qual se arrependesse, ela sabia que havia algo de muito errado, só não sabia o que era.

Dionísio aproximou seus lábios dos de Lívia, que fechou os olhos numa demonstração de entrega, ele a apertou forte em seus braços e a beijou profundamente, mas não era um beijo comum, ele estava sugando sua vida, um breve sorriso se fez nos lábios da garota, então seus braços penderam soltos ao lado do corpo, a cabeça lentamente caiu para trás e Dionísio a colocou no chão de forma delicada, acariciou seu rosto uma ultima vez.

“Obrigado, minha pequena.”

Enquanto Vanessa e os amigos corriam na direção dos dois depois do que viram, Dionísio saiu andando pela porta, lá fora encontrou um casal que acabava de chegar num carro preto esportivo, chegou bem próximo ao rapaz e ao olhar fundo em seus olhos ele lhe entregou as chaves, Dionísio entrou e preparava-se para partir quando Caio e Tiago apareceram na porta, correram até Dionísio gritando.

“Maldito assassino! Nós vamos te pegar.”

Dionísio acelerou e entrou na pista, Caio e Tiago pegaram o carro e começaram a persegui-lo, estavam muito rápidos, de vez em quando precisavam frear bruscamente por causa de algum carro que vinha na pista contrária, logo à frente, numa curva fechada, um caminhão que vinha na outra pista não conseguiu frear a tempo, o carro em que Caio e Tiago estavam rodopiou várias vezes, batendo na traseira do carro de Dionísio, que foi jogado contra uma árvore, logo em seguida o outro carro também bateu na mesma árvore e uma enorme explosão iluminou toda aquela área, na pista o caminhão tombava se arrastando por vários metros, deixando uma imensa mancha de óleo.

Dionísio saiu do meio das chamas, sua pele levemente queimada, andou alguns metros no matagal e então encontrou uma enorme poça de lama onde cavou e satisfeito por ter conseguido o que queria, se enterrou profundamente, fechou os olhos num misto de dor e prazer, era hora de descansar, havia muito o que fazer ainda naquela cidade.

Belin e Belial estavam parados a poucos metros de onde o acidente havia acontecido, ela olhou para Belial num tom meio desconfiado.

“Você acha que ele percebeu algo?”

“Não creio. Mas só teremos certeza quando chegar a hora certa.”

Belin abraçou-se à Belial, sentia-se protegida junto dele, mas tinha medo do que ele era capaz para ter o que queria.

As duas sombras Vulpinas sumiram em meio a uma densa neblina.















Trechos deste conto na fonte GEORGIA foram escritos por Neith WarTrechos deste conto na fonte ARIAL foram escritos por The Grey Knight (Arthur Ferreira Jr.'.)