segunda-feira, 3 de outubro de 2011

CUCO 333

De Arthur Ferreira Jr.'.
Em honra a Neil Gaiman e escárnio e admiração a Wagner de Holanda







A mocinha no topo do viaduto duvidou de si mesma e tentou não olhar para o sol.  Cuco.  A cabeça quase rodava; a vertigem tentava pôr o pê pela fresta daquela porta oculta em sua mente, mas ela conseguiu trancar a porta a tempo.

Vagões e mais vagões do metrô estavam à sua vista.  Parados, quentando sol como lagartos enfileirados, sem uso até que a obra de mais de dez anos se completasse.  E ela também esperava que algo se completasse: era um processo lento e quase tão doloroso.  Dentro de sua mente, um ninho.

No ninho, uma mente invasora.  O invasor reclamava contra o sol.  Reclamava contra o perigo.  Ele não queria morrer antes de nascer de verdade... antes de tomar o corpo da garota para si.

O invasor estava enganado: quando o ovo chocasse no ninho, ele e a garota seriam uma coisa só.  E aí, seria irreversível.  Cuco.

Às vezes o processo era lento, como no caso da garota na beira do viaduto.  Às vezes uma paixão ou um ódio muito forte aceleravam tudo: o vampiro, o vulto vulpino não precisava beber seu sangue para pôr seus ovos de cuco dentro dela, desde que houvesse um mínimo da centelha e um nome.  Cuco.  Um nome que ressoasse forte dentro da cabeça da garota, mesmo que ela não soubesse disso: nomes como Belial.  Dionísio.  Samyhazah.  Amanozako.  Elegbara. Nyarlathotep.  Laozi.  Flamel.  Melkor.  Saci Sacura.  Abraxas-Sabaoth.  Malkovich.  Tehuti.  Loki.  Flagg.  Sun Wukong.  Mantus.  Angra Mainyu.  Smith.  Vucab Caqix.  Yurugu.

Não importava a origem do nome, se ele soasse muito forte, o vampiro o retirava e, no lugar, no buraco deixado na mente da garota, ele faria seu ninho e colocaria sua semente. Cuco.



A garota subindo na borda do viaduto tinha mais três dias, e na terceira noite ela seria outra pessoa.  Não seria mais uma pessoa, porque uma pessoa tem identidade.  Cuco.  A palavra pessoa vem de persona, aquela máscara teatral que ri ou chora.  Cuco.  A partir da terceira noite, chorar ou rir seriam a mesma coisa.  Ela se alimentaria de risos, lágrimas, suor e sangue.

A garota que caía do viaduto sentiu estar livre por poucos segundos de queda.  Cuco.

Devemos lamentar pelo espetacular nascimento em meio à queda livre?  Não, nunca lamentemos uma bela cena, mesmo que trágica.  Cuco.  Mesmo que hoje uma criatura horrenda, grotesca, com os ossos esfarelados e a pele cheia de cotocos de asas, de penas afiadas, espreite as ruas de um subúrbio da cidade, a filha de Kronos, fugida há três dias do hospital para onde foi levada, antes do necrotério a receber.


Três dias.  Cuco.




2 comentários:

  1. publicado originalmente em
    http://insanemission.blogspot.com/2010/11/cuco-333.html

    ILUSTRAÇÕES E IMAGENS, AUTORES E FONTES

    1
    Fotografia de relógio de Stefan Strumbel
    http://www.stefanstrumbel.com/

    2
    Filhote de cuco alimentado pela mãe adotiva
    http://www.fotoplatforma.pl/pt/fotos/3921/

    3
    Supostamente "Trickster Clock", Autor Desconhecido
    http://www.crystalinks.com/trickster.html
    (Se alguém souber de quem é este maravilhoso trabalho, por favor me diga! Cacei à toa)

    ResponderExcluir