Em honra a Neil Gaiman e escárnio e admiração a Wagner de Holanda
A mocinha no topo do viaduto duvidou de si mesma e tentou não olhar para o sol. Cuco. A cabeça quase rodava; a vertigem tentava pôr o pê pela fresta daquela porta oculta em sua mente, mas ela conseguiu trancar a porta a tempo.
Vagões e mais vagões do metrô estavam à sua vista. Parados, quentando sol como lagartos enfileirados, sem uso até que a obra de mais de dez anos se completasse. E ela também esperava que algo se completasse: era um processo lento e quase tão doloroso. Dentro de sua mente, um ninho.
No ninho, uma mente invasora. O invasor reclamava contra o sol. Reclamava contra o perigo. Ele não queria morrer antes de nascer de verdade... antes de tomar o corpo da garota para si.
O invasor estava enganado: quando o ovo chocasse no ninho, ele e a garota seriam uma coisa só. E aí, seria irreversível. Cuco.
Às vezes o processo era lento, como no caso da garota na beira do viaduto. Às vezes uma paixão ou um ódio muito forte aceleravam tudo: o vampiro, o vulto vulpino não precisava beber seu sangue para pôr seus ovos de cuco dentro dela, desde que houvesse um mínimo da centelha e um nome. Cuco. Um nome que ressoasse forte dentro da cabeça da garota, mesmo que ela não soubesse disso: nomes como Belial. Dionísio. Samyhazah. Amanozako. Elegbara. Nyarlathotep. Laozi. Flamel. Melkor. Saci Sacura. Abraxas-Sabaoth. Malkovich. Tehuti. Loki. Flagg. Sun Wukong. Mantus. Angra Mainyu. Smith. Vucab Caqix. Yurugu.
Não importava a origem do nome, se ele soasse muito forte, o vampiro o retirava e, no lugar, no buraco deixado na mente da garota, ele faria seu ninho e colocaria sua semente. Cuco.
A garota subindo na borda do viaduto tinha mais três dias, e na terceira noite ela seria outra pessoa. Não seria mais uma pessoa, porque uma pessoa tem identidade. Cuco. A palavra pessoa vem de persona, aquela máscara teatral que ri ou chora. Cuco. A partir da terceira noite, chorar ou rir seriam a mesma coisa. Ela se alimentaria de risos, lágrimas, suor e sangue.
A garota que caía do viaduto sentiu estar livre por poucos segundos de queda. Cuco.
Devemos lamentar pelo espetacular nascimento em meio à queda livre? Não, nunca lamentemos uma bela cena, mesmo que trágica. Cuco. Mesmo que hoje uma criatura horrenda, grotesca, com os ossos esfarelados e a pele cheia de cotocos de asas, de penas afiadas, espreite as ruas de um subúrbio da cidade, a filha de Kronos, fugida há três dias do hospital para onde foi levada, antes do necrotério a receber.
Três dias. Cuco.
publicado originalmente em
ResponderExcluirhttp://insanemission.blogspot.com/2010/11/cuco-333.html
ILUSTRAÇÕES E IMAGENS, AUTORES E FONTES
1
Fotografia de relógio de Stefan Strumbel
http://www.stefanstrumbel.com/
2
Filhote de cuco alimentado pela mãe adotiva
http://www.fotoplatforma.pl/pt/fotos/3921/
3
Supostamente "Trickster Clock", Autor Desconhecido
http://www.crystalinks.com/trickster.html
(Se alguém souber de quem é este maravilhoso trabalho, por favor me diga! Cacei à toa)
Imagem 3 de Marc Chagall.
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