por Arthur Ferreira Jr.'.
Hello again, friend of a friend, I knew you when
Our common goal was waiting for the world to end
Now that the truth is just a rule that you can bend
You crack the whip, shapeshift and trick the past again
METRIC, Black Sheep
PRIMEIRA ITERAÇÃO
UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos azuis brilharam no escuro, e a humanidade seguia seu rumo, sem notar a diferença.
Belial corria pela avenida, desfrutando do prazer e euforia das fraquezas humanas. Havia ido embora a desorientação das primeiras noites naquele corpo que se chamava André, e o vampiro, um Vulto Vulpino em busca do paradeiro de outros, havia deixado sua nova consorte, Belin, experimentar suas capacidades vulpinas, brincar.
Enquanto isso se deixava correr à toa, às cegas pela cidade decadente dos humanos. Estava quase se acostumando a ser algo entre humano e a entidade quase-imaterial que antes era. Depois da possessão de André. Belial quase deixava suas presas à mostra e revelava sua natureza através dos olhos azuis brilhantes, de tão fora de controle que corria, sem destino.
Ia correndo pela cidade labiríntica, mas escolhendo deixar suas pegadas pelas avenidas mais largas e cheias de carros, arriscando sua nova vida, embora apenas aparentemente. Os pés se movimentavam cada vez mais rápido, mas ainda dentro dos limites humanos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava as capacidades sobre-humanas de Belial. Passando debaixo de um viaduto, ele sentia suas passadas ganharem novo ritmo. Era cadenciado. Era sincopado. Era insano, aquele ritmo. Cuco, cuco, cuco: como um bater de coração cheio de adrenalina, tonto de dor e prazer. Os olhos de Belial subiram a tempo de enxergar a forma feminina caindo do viaduto. A queda espetacular e rodopiante desafiava as barreiras do próprio tempo, e Belial percebeu que havia seguido as linhas de força certas daquela cidade, chegando no momento exato do chocar de mais um ovo mental, mais uma vampira nascia.
Nascia e morria. Desfigurada, entre a morte e a vida, ela sugou o ar sujo pela primeira vez, pois só agora percebia quem era, quem sempre fora. “Ananke” era o nome que brotava de seus lábios machucados.
Belial e Belin contemplavam a garota quase cega, mutilada, suas medonhas cicatrizes revelando, pouco a pouco, penas afiadas cortando-lhe a carne. Ela era um monstro, mas um monstro útil: Belial a usaria contra Kronos, conseguiria a atenção daquele maldito milenar, e se tornaria o novo Maestro da Morte.
MEIA HORA ANTES…
Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma colina específica, onde ela podia se recostar num estranho monumento – um menir, ou outro tipo de pedra ereta – e ler trechos dos vários livros que trazia. O monumento era a razão do tombamento daquela área, tão próxima à vila, mas tão selvagem.
O hábito de ler trechos de livros separados, saltar pedaços como se movida por uma intuição vinda não sabe-se de onde, pouco a pouco fez de Belin alguém capaz de conectar fatos à primeira vista não relacionados… e também de cometer erros quase estúpidos, aos olhos das pessoas de raciocínio mais comum.
Esse raciocínio incomum foi o que trouxe Belin e seu amante – amante? Seu consorte, como ele às vezes a chamava, para aquela cidade grande, suja e labiríntica, cheia de ladeiras, grandes avenidas e viadutos. E agora ela observava da janela escancarada, Belial exercitando-se ao sol. A transformação em Vulto deixara Belin mais pragmática, e ela estava ocupada em escanear os livros que trouxera de sua cidade – aqueles livros de ocultismo que pertenciam a sua mãe, e aqueles livros mais obscuros ainda, que ela conseguiu trazer de Raven Lake além dos portais do paralelo, coisa que nem Belial conseguia fazer. Assim poderia ler os livros com mais conforto pelos lugares onde vagariam no futuro, direto no laptop que roubaram, ou em qualquer outro aparelho ainda menor que roubassem no futuro.
O processo de escaneamento desses livros de Raven Lake era lento e sofrido, porque alguma coisa neles atrapalhava o funcionamento das máquinas eletrônicas, e às vezes, a imagem resultante não era exatamente o que Belin enxergava com seus olhos violetas. Frustrada com mais um fracasso (até então só conseguira escanear um livro completo, e trechos pequenos de cinco outros), a moça – a vampira – contemplava Belial lá embaixo terminar suas séries de abdominais, levantar-se e gritar:
“Desça aqui! Veja se consegue me pegar … ”
UM MÊS E MEIO ANTES …
“O homem não saía de sua mente, tinha certeza de que não era alucinação. O que ele teria feito? O que ele queria dela? Seria um ladrão? Não, definitivamente não podia ser.”
Belin não podia estar mais errada. Agora ela sabia.
Belial era sim, um ladrão. Ladrão de mistérios no estranho lugar de onde veio, ladrão de vidas neste mundo mais sólido onde as escolhas são mais limitadas. Naquele instante, porém, com o sol nascendo por trás das montanhas e seus primeiros raios caindo quentes sobre a pele dos dois amantes na beira do precipício, Belial revelava outra de suas facetas: o de alguém apaixonado (pois se Belial era mesmo um demônio, não são demônios a essência da paixão?).
Os olhos púrpura de Belin arregalavam-se devagar com a chegada do sol, impiedoso e inclemente o sol lhe parecia, mesmo sendo a tênue luz que encerrava a madrugada deliciosa e selvagem que haviam passado. Os dois estavam deitados, seminus e suados e muito próximos da beirada do precipício, e Belin começava lentamente a entrar num estado de pânico que jamais havia sentido antes. Era o sol. Sim, era o sol que estava lhe causando aquilo. Semierguida, ela tentava inutilmente fugir, mas seus músculos um tanto cansados não lhe obedeciam direito. Olhos azuis lhe fitaram preocupados, e a mão de Belial – que um dia Belin conhecera como a mão de André, e que de início Belin pouco teria imaginado percorrendo-lhe todo o corpo como acontecera durante a noite – lhe segurou o ombro com firmeza.
“Calma. Calma. É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique calma. Eu devia ter avisado, meu amor. Venha, recoste-se em meu peito, respire fundo, vai passar se você aceitar que agora é outra pessoa. Sua verdadeira natureza se revelou, não consegue sentir?” A moça agarrou-se a Belial com força, os olhos recusando-se a deixar de olhar o sol nascente. Belial continuou falando, já que Belin a princípio não conseguia responder nada:
“É só um reflexo. Não é real, pelo menos não aqui em seu mundo. Tenha calma, respire fundo, já disse, o sol NÃO PODE TE FERIR! Sua pele é ainda a mesma, minha querida, sua natureza só mudou por dentro, acha que o poder ia te deixar tão desprotegida durante metade do tempo? Vamos, respire fundo, isso, e com mais calma, perceba que seu corpo não está morto como sua mente quer te enganar… a noite que passamos não prova isso mais do que nunca, Belin?”
SEGUNDA ITERAÇÃO
UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos azuis brilharam no escuro, o colapso das realidades, uma explosão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, dor, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade seguia seu rumo, inquieta em seu sonhos despertos, e ávida de sua própria existência.
Belial corria pela avenida principal da cidade labiríntica, e Belin estava quase o alcançando. Ela ria com a brincadeira que testava suas capacidades vulpinas, e os dois quase expunham suas presas, revelando suas naturezas através dos olhos brilhantes, de tão fora de controle que corriam, sem destino. Os carros engarrafados num entroncamento eram perfeitos para que eles se movimentassem cada vez mais rápido e sem perigo, mas ainda dentro dos limites humanos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava as capacidades sobre-humanas do casal de vampiros, mas Belin não temia mais o sol como havia acontecido no seu primeiro alvorecer após a transformação vulpina.
Passando perto de um viaduto, eles ouviram uma ambulância correndo a alta velocidade, desviando-se dos carros que lhe dava passagem, e o ruído da sirene parecia diferente, num ritmo bizarro. Era cadenciado. Era sincopado. Era insano. Cuuuuuuco, cuuuuuuuuco, cuuuuuuuuco… como um bater de coração acelerado, tonto de dor e prazer. Os olhos de Belin e Belial enxergaram a tempo para onde a ambulância se dirigia – uma moça havia se jogado do viaduto.
De repente, Belin estacou e segurou o ombro de Belial – percebeu, e mostrou ao companheiro, que eles haviam seguido as linhas de força daquela cidade, chegando logo após o chocar de mais um ovo mental, mais uma vampira havia nascido. Nascia e morria. Desfigurada, entre a morte e a vida, ela sugou o ar sujo pela primeira vez, pois só agora percebia quem era, quem sempre fora. “Ananke” era o nome que brotava de seus lábios machucados; e mesmo a cinquenta metros de distância, os dois Vultos conseguiram ouvir aquele nome terrível.
Os paramédicos e enfermeiros lhe davam assistência, ela lhes parecia muito ferida, e corria risco de vida. Belial sabia que ela era um monstro, mas um monstro útil: Belial a usaria contra Kronos, conseguiria a atenção daquele maldito milenar, e se tornaria o novo Maestro da Morte. Se havia alguma coisa em que era habilidoso, era nas artes da ilusão: agiu rápido, e os dois conseguiam contemplar a a garota quase cega, mutilada, suas medonhas cicatrizes revelando, pouco a pouco, penas afiadas cortando-lhe a carne; mas os enfermeiros e paramédicos enxergavam apenas o que queriam ver, aquilo que foram socorrer: uma garota muito ferida, correndo risco de vida.
Ao longe, do lado de um dos poucos orelhões que funcionava de fato naquela cidade, uma figura observava a acidentada, seus socorristas e os dois vampiros, sem ser percebida.
MEIA HORA ANTES…
Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma certo precipício, de onde conseguia enxergar, lá embaixo, uma colina onde havia um menir, um monumento antigo feito de pedra, provavelmente ereto ali pelos antigos nativos da terra e que era a razão do tombamento do bosque.
O hábito de ler trechos de livros separados, saltar pedaços como se movida por uma intuição vinda não sabe-se de onde, pouco a pouco fez de Belin alguém capaz de conectar fatos à primeira vista não relacionados… e também de cometer erros quase estúpidos, aos olhos das pessoas de raciocínio mais comum.
Talvez o pior desses erros foi aquele que trouxe Belin e seu amante – amante? Ele a chamava de consorte – para a grande cidade labiríntica, tão suja e cheia de viadutos, avenidas intermináveis, encruzilhadas e ladeiras. Aquela cidade a frustrava, mas os tomos de ocultismo que pertenciam a sua mãe, e mais aqueles livros mais obscuros ainda, que ela conseguiu trazer de Raven Lake além dos portais do paralelo, com a ajuda de Belial, lhe davam indicações soltas que, quando unidas, davam a impressão de que a existência dela, Belin, era algo predestinado, e predestinado a revelar seu maior potencial ali, na cidade grande.
Quase o sonho ingênuo de uma adolescente do interior, e na prática era isso mesmo. Estar ao lado de seu amante vampírico, observá-lo exercitar-se ao sol – seus poderes eram menores durante o dia, mas o sol não os machucava, no máximo incomodava e excitava em certos momentos – e terminar de ajeitar a mochila onde guardava um laptop roubado. Na memória daquele computador, todos os livros de sua antiga biblioteca, mais os tomos arcanos de Raven Lake, escaneados sem maiores problemas. A memória do aparelho parecia sedenta daqueles dados. Com certeza, o computadorzinho estava melhor em suas mãos do que nos daquela mulher na beira da estrada, que pedia carona.
Às vezes Belin se arrependia daquilo, como se arrependia de não ter cortado ainda seus cabelos, que a cada noite a incomodavam mais. Os dois arrependimentos tinham o mesmo peso. Se a mãe de Belin, dona da maioria dos originais daqueles livros, soubesse o que andava pela mente e alma de sua filha (será que ela ainda era filha daquela mulher que morrera há tantos anos?), diria que a balança moral de Belin estava totalmente desequilibrada. Belial responderia que Belin estava agora além da moralidade convencional – às vezes o vampiro parecia propenso a uns discursos prontos, que irritavam um pouquinho Belin, mas era só aquilo que a incomodava, tudo o mais a deliciava e a fazia não pensar em perigos, riscos, mudanças, consequências…
Belial terminou sua série de abdominais, levantou-se e pegou Belin nos braços, que havia acabado de pôr a mochila nas costas, beijando-a profundamente e, depois de morder os lábios da vampira, empurrou-a e gritou:
“Vamos lá! Veja se consegue me pegar…”
UM MÊS E MEIO ANTES …
“Quem poderia ter me seguido? Quem saberia deste lugar?”
Belin acordou tremendo de frio na beira do precipício, o sol nascendo por trás das montanhas e seus primeiros raios começando a cair quentes sobre a pele dos dois amantes. Primeiro, teve aquela impressão paranoica, vinda de algum sonho ou pesadelo, de que alguém a havia seguido até aquele lugar onde costumava ler, e a surpreendera agarrada com aquele estranho, ambos seminus e suados, saídos de uma madrugada deliciosa e selvagem. Belin começou lentamente a entrar num estado de pânico que nunca havia sentido antes.
Belial a observou intrigado, mas não se mexeu. E para piorar as coisas, o sol. Semierguida, ela tentou fugir do sol e daquela presença que os observava, mas seus músculos um tanto cansados não lhe obedeciam direito. Olhos azuis a fitaram, preocupados, e a mão de Belial, que um dia se chamou André, lhe segurou o ombro com firmeza.
“Calma. Calma. É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique calma. Eu devia ter avisado. Respire fundo, vai passar se você aceitar que agora é outra pessoa. Não é mais humana, mas o sol não consegue te ferir! Sua verdadeira natureza se revelou, será que não percebe?” A moça agarrou-se a Belial com força, os olhos fugindo do sol nascente. Belial continuou falando, já que Belin a princípio não conseguia responder nada:
“É só um reflexo. Não é real, pelo menos não aqui em seu mundo. Tenha calma, respire fundo, já disse que o sol NÃO PODE TE FERIR! Sua pele é ainda a mesma, minha querida, sua natureza só mudou por dentro, acha que o poder ia te deixar tão desprotegida durante metade do tempo? Vamos, respire fundo, isso, e com mais calma, perceba que seu corpo não está morto como sua mente quer te enganar… a noite que passamos não prov...” Belin o interrompeu e cobriu a boca do vampiro com a mão, sussurrando:
“Calaboca, calaboca… shhh… ela vai nos ouvir.”
FRAGMENTO UM
DIONÍSIO AUTRAN ERA UM HOMEM COMO QUALQUER OUTRO. Um dos poucos defeitos que tinha (mas, espere aí, se era um homem comum, então devia ter muitos defeitos! Mas refiro-me a defeitos assumidos diante dos outros) era ser um fumante inveterado.
Mesmo que lhe pedissem para parar de fumar dentro de casa ou do carro, ele continuava. E foi assim que um dia ele corria pela estrada, fumando enquanto dirigia, sozinho porque sua namorada havia se enchido do fedor de nicotina fortíssimo que impregnava o carro. E para piorar, uma dor de cabeça atroz.
Não sei se um dos outros poucos (poucos?) defeitos de Dionísio Autran era ser azarado – mas com certeza aquilo foi um grande azar: enquanto Kronos, o Imortal Maldito, entrava no matagal à beira da estrada e cavava um buraco buscando o esquecimento desta vida, Dionísio passava de carro e jogava um resto de cigarro aceso justamente sobre a poça de óleo que o carro de Kronos, parado no acostamento, derramava com uma certa urgência.
Um estrondo correu pelo céu, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos esverdeados brilharam no escuro, uma tentativa de possessão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, uma dor de cabeça atroz, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade seguia seu rumo, inquieta em seu sonhos despertos, e ávida de sua própria existência, enquanto mais um ovo de Vulto Vulpino chocava de maneira imprevista, ávida de sua própria existência.
Abrindo a porta da ruína que fora o carro de Dionísio Autran, saiu … apenas Dionísio, pegando fogo, seus olhos esverdeados brilhando mais forte que as chamas da explosão, e junto com a porta do carro abriu-se a porta para o paralelo, expulsando Dionísio, o Andarilho, para uma das autoestradas que corriam por aquela dimensão paralela.
Dionísio sabia que estava ferido, mas também sabia que era um trapaceiro – e sendo filho de Kronos, o Maldito, empurrou seus próprios ferimentos fatais para frente… no próprio tempo… sabendo que tinha que passá-los adiante, gerar mais um Vulto, e esse Vulto que lidasse com as consequências do nascimento dele, Dionísio. Uma cruel aplicação do princípio dos filhos pagando pelo pecado dos pais.
Dentro de si, da mesma forma que em Kronos, ele SABIA que haviam algumas sementes que, invadindo uma alma humana, poderiam brotar como outros Vultos – e Vultos viriam do além da Espiral Sem Nome, tomariam um novo nome e teriam poder, como acontecera agora mesmo com ele. A necessidade – em grego, ananke – sobrepujou Dionísio e tornou-se desejo, desejo de procriar e gerar. Mas havia também o medo de que o Vulto gerado pudesse se voltar contra ele, e buscar vingança.
E, em sua alma de Vulto, veio a imagem de Lívia, cabelos ruivos e encaracolados envolvendo um rosto belo, sensual e angustiado.
Houve um momento em que o desejo superou o medo, mas esse momento foi embora. E ali, paralisado no meio da autoestrada, Dionísio se perguntava o que fazer. Como não confundir aquele instante de paralisia com indecisão? Mas, se havia um traço de personalidade que pouco habitava a alma de Dionísio, era a indecisão. O que ele sentia, ali parado como se esperasse a chuva despencar sobre seu corpo e alma, era apreensão. Ansiedade. A apreensão do conhecimento. Ele sabia, conhecia, e conhecendo, tinha poder. Mas esse poder não lhe dava – ironicamente – o direito de fazer o que até há pouco estava desejando fazer. Certamente, o arrependimento viria, tão certeiro quanto a flecha de um Cupido.
FRAGMENTO DOIS
COMO ELA QUERIA CORTAR O CABELO, deixá-lo curtinho como o da mulher que pedia carona na estrada. Belin lembrava-se perfeitamente do jeito daquela mulher: devia ter uns vinte e oito anos, ainda não podia ter passado dos trinta … cabelos curtos num penteado excitante, de mechas ousadas e arrepiadas, deixando a nuca exposta. E Belin tinha uma bela nuca, ainda mais excitante que a da mulher que ela e Belial roubaram no meio da estrada… o que significava que ficaria ainda mais excitante que sua vítima.
Desejar o que é dos outros – antigamente, Belin teria considerado isso errado. Mas, de qualquer forma, aquela mulher parecia sorrir quando os dois aceleraram o carro levando a mochila do laptop; e imitar um corte de cabelo não era, na verdade, um roubo. Então, tudo bem. Ela podia empurrar quaisquer arrependimentos para a frente… no próprio tempo.
A'arab Zaraq, uma ninhada de Vultos Vulpinos. Depois de escanear todos os livros, os de Raven Lake e os de sua própria mãe, Belin selecionou vários trechos e diagramas que indicavam a grande, suja e labiríntica cidade onde quatro autoestradas convergiam como numa encruzilhada… ali se daria o Princípio das Sombras, o reunir de uma a'arab zaraq. Assim orientavam os tomos de Raven Lake, seus trechos copiados e colados sobre o mapa da área ao redor da grande cidade.
Um dos tomos também falava de Kronos e Nemesyn, do primeiro casal de vampiros; falava como Kronos baniu Nemesyn para a Espiral Sem Limites após uma briga entre os dois; e de como esse ato abriu as portas para todos os outros Vultos Vulpinos, dispostos a vagar pela terra por algum tempo, exultar em suas novas máscaras e depois retornar à Espiral, para mais tarde serem chocados de novo por outros Vultos, repetindo eternamente esse ciclo… tudo enquanto Kronos não conseguia se livrar de seu corpo hospedeiro, um verdadeiro imortal, um verdadeiro imortal maldito.
Não havia nenhuma profecia naqueles tomos que mostrasse como Kronos poderia ser liberto de sua maldição, nem como seu poder imenso poderia ser roubado – mas Belial achava que havia um maneira.
Belin achava que aquela maneira era como andar pelas bordas de um precipício, mas guardava seus medos dentro de si mesma.
FRAGMENTO TRÊS
ENTÃO ERA TUDO VERDADE. O MISTÉRIO. PARTIDO EM DOIS. Uma parte era aquele Mistério realmente roubado de Astarte, ou Shub-Niggurath, ou Ereshkigal, não importa, era a mesma vampira; a outra parte era algo que já fez parte de um outro vampiro – mas não um vampiro como os Vultos, e que não existia na mesma realidade que Belin.
Ridículo, história ridícula. Foi o que ela pensou a princípio.
Tudo que Belin precisava era se livrar dessa história, e ela só conseguia fazer isso – temporariamente – ao se alimentar. Sangue. Emoções. Segredos.
A estrada se estendia até o horizonte, e do horizonte para aquela cidade grande e suja, e Belin sabia que, se seguisse para o lado oposto, encontraria sua pequena cidade, esperando por ela, a casa fechada como nunca esteve antes. Pelo menos até que começassem a investigar o desaparecimento dela, de André e sua mãe Eleonora. Mas ela preferia deixar esses problemas para depois, empurrá-los para o futuro, porque a estrada exercia um fascínio poderoso – talvez mais poderoso que o que Belial exercia sobre ela.
Postos de parada na estrada, como aquele onde ela estava, eram perfeitos para o que ela pretendia: um hotelzinho mixuruca, um posto de gasolina, um bar. Enquanto Belial terminava de escanear os livros no hotel, ela se alimentaria sem maiores problemas.
Não, não no bar. O posto de gasolina era mais adequado: uma loja de conveniência, rapazes parados com seus carros tocando músicas, vindos de uma cidade próxima para farrear e fazer pegas. Porque tinha sempre que cair naquele esteriótipo de mulher fácil e sensual, quando se é uma vampira? Talvez porque seja mais fácil caçar assim. E talvez também porque ela se sentia extremamente sensual ao agir assim. Às vezes, sentia-se mais excitada do que quando estava com Belial.
O rapaz musculoso não estranhou quando ela pediu que eles fosse para trás do posto, após o primeiro beijo. Lá ela a tomou nos braços, e ela sentiu a força de seus braços … e também sentia, quase que automaticamente, que ela podia ser muito mais forte que ele. Aquele rapaz – Luciano era o nome – levara alguns anos para ganhar aquele físico, malhando muito e tomando alguns esteroides, mas não o suficiente para lhe fazer mal à saúde… tudo para ser mais forte que os outros, e atrair a atenção das mulheres. Um menino rejeitado pelas meninas, e perseguido pelos outros garotos, ainda se escondia dentro dele. Mas aquilo que alimentava Belin era sua força de vontade, sua vontade de ser melhor que os outros, mais forte, um exemplar atraente da espécie humana.
Em Belin, aquilo se traduzia no fato puro e simples de que ela era mais forte que ele, apesar de seus músculos não terem crescido – pelo contrário, ela sentia-se, e era, muito mais feminina que minutos atrás, o cheiro de mulher deixava Luciano louco, aquele cheiro vindo do prazer que ela sentia ao nutrir-se dele, e da própria atratividade que Luciano exalava, que era roubada por Belin. Luciano sentia-se fraco diante da vampira – e pensou que aquela mulher era tão linda que o deixava meio com os pneus arriados, não estranhando aquela sensação de fraqueza ao olhar fundo nos seus olhos (eram quase púrpuras, pensou o rapaz) enquanto se beijavam de olhos abertos.
Aproveitando o fascínio idiota do rapaz por ela, ela segurou forte na cintura de Luciano, e exigiu – aquilo ficou claro por sua linguagem corporal, seus movimentos dominantes e lascivos – que ele ficasse quieto para que ela se aproveitasse dele. E, é claro – era inevitável – ele deixou. Ela praticamente rasgava a camisa de Luciano enquanto lambia o pescoço do moço, a língua correndo com cada vez mais força, até que a excitação do drenar fosse tanta em Belin, que todos os seus dentes tornaram-se afiados, mais afiados, prontos para rasgar aquele pescoço.
Ela nunca havia matado ninguém até aquele dia. E sabia que um dia seria necessário – porque então não treinar com aquele rapaz? Foi o pensamento que lhe correu pela mente. Não seria delicioso sorver sua morte? E o que viria com aquela morte? Que coisas poderiam ser drenadas no momento terrível da agonia final? E que quantidade enorme de sangue ela poderia provar … cinco litros de sangue, não era isso que diziam que era a média numa pessoa? A gula, a sede, quase a sobrepujava.
Mas ela não conseguiu – parou de lamber aquele pescoço, soltou o torso de Luciano, e ele olhou espantado para Belin… e mais espantado ficou, quando ela começou a balbuciar, “Vá embora… rápido…” e percebeu que os dentes da garota tão linda que estava pegando eram afiados como os de um animal, não, afiados como as presas de um monstro!
Belin levou a mão aos lábios, instintivamente, ao perceber o terror tomando conta de Luciano – e sabia que agora não tinha jeito. Teria de matá-lo, ou ele poderia dar a língua nos dentes. O moço tentou sair correndo, mas o braço aparentemente delicado, mas terrivelmente forte, de Belin cortou sua fuga. Antes que conseguisse gritar, sua garganta foi dilacerada por presas, sim, por presas afiadas como as de um monstro…
O gorgolejar do sangue em sua garganta, sangue roubado do qual ela não precisava para sobreviver, era tão intenso, tão visceral, que Belin esqueceu qualquer culpa por aquela morte, pelo menos naquele instante. E embora fosse prudente que o moço não fosse drenado até o fim (porque cadáveres exangues chamam bastante atenção!), todos aqueles cobiçados cinco litros foram sugados com força, aquela força também roubada, e quando o cadáver de Luciano desabou no chão, Belial sentia como se tivesse tomado um porre e uma feijoada, tudo na maior pressa do mundo.
A sorte – aquela sorte incomum que sempre protegera Belin e que parecia aumentada desde sua transformação – fez com que ninguém fosse atrás do rapaz naquele momento, nem naquela noite. E a sorte foi grande, porque se poucos aceitariam um monstro em forma feminina, lambendo os lábios correndo sangue, lábios entreabertos exibindo dentes afiadíssimos, e um cadáver recém-assassinado jogado no chão do lado da garota ajoelhada, atrás de um posto de gasolina de beira de estrada, menos pessoas ainda aceitaram em são consciência que o cadáver – aquele óbvio cadáver de garganta dilacerada – sorrisse, começasse a falar e declamar poesia…
E se Belin começava a sentir horror pelo que tinha feito, um horror ainda maior a tomou quando ouviu o que o cadáver dizia, lhe fez perguntas de volta e as respostas – segredos – vinham diretas como os raios do sol… e em meio àquilo tudo, a vampira sentia como se caminhasse pela beira de um precipício…
TERCEIRA ITERAÇÃO
UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, mas os padrões foram interpretados de forma errada, as vozes foram mal ouvidas e o estrondo soou à toa. Dois olhos vermelhos brilharam no escuro, a união de duas realidades, duas explosões, poças de óleo numa pista de carros, dois acidentes, dois homens andando pelo matagal, um homem cavando um buraco de lama, o outro se aproveitando da terra fofa para cavar menos, vários carros achatados largados pela pista, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade desperta no meio de seu sono, levanta para esvaziar a bexiga, e logo volta a dormir apesar da noite tão tempestuosa…
Belin corria pela avenida principal da cidade labiríntica, e Belial estava quase a alcançando. Ela expunha suas presas sem medo, porque ninguém as enxergaria, naquela velocidade com que corria. Nem ninguém enxergaria seus olhos brilhando tão púrpuras, e ela sentia-se fora do controle, mas como quem corre seguindo trilhos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava suas capacidades sobre-humanas, mas Belin acolhia o sol, o calor, a sensação de queimadura na pele, aquela quase-dor, quase-prazer…
Então, aconteceu. Ela corria tão rápido que o tempo parecia parar. O tempo parecia ter um gosto, um sabor, porque ela sentia o sabor do tempo em sua língua e presas. Não era mais o vento que ela cortava em sua corrida: era o tempo e o espaço. Belial ficou para trás e do grande viaduto à frente, caiu uma forma… como uma menina, uma mulher caindo para a morte. Era um vislumbre translúcido… uma possibilidade não-concretizada… e tão necessária. Belin, seguindo um puro instinto, saltou no ar e agarrou aquela forma como se sua vida dependesse disso.
Os olhos da aparição feminina brilharam púrpuras, e Belin sentiu toda aquela energia carregada e acumulada na forma invadir seu corpo, cair por dentro de sua garganta, queimando, e deixando aquele sabor do próprio tempo a penetrar.
Em seus ouvidos, latejava aquela voz que um dia Belin ouvira da boca de uma de suas vítimas mortas: “Eu sou Nemesyn, eu sou Ananke, eu sou Astarte, eu sou Belin, eu sou você e sou o Todo.” A sensação, a descarga orgásmica daquela essência a se reunir a dela, era como da vez em que Belial implantara em Belin uma parte de Astarte – mas bilhões de vezes mais forte. Era cadenciada. Era sincopada. Era insana, cuco, cuco, cuco… como um coração acelerado, tonto de dor e prazer, que cantava uma canção com seus batimentos.
Mesmo a apenas cinquenta metros de distância, Belial não conseguiu perceber nada – apenas viu Belin se jogar no ar e cair no chão.
A cacofonia nos ouvidos de Belin começou a diminuir, e se esvaiu com uma última frase, “Adormecerei dentro de você, até o momento certo chegar…” Belial estendeu a mão para sua consorte e a ajudou a se levantar, perguntando: “Que é que aconteceu?”
Mas Belin não conseguia responder.
MEIA HORA ANTES…
Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma colina específica, onde ela podia se recostar num estranho monumento – um menir, ou outro tipo de pedra ereta – e ler trechos dos vários livros que trazia. O monumento era a razão do tombamento daquela área, tão próxima à vila, mas tão selvagem. Quase tão selvagem quanto ela.
Aquela intuição selvagem que a tomava quando lia os trechos dos tomos de Raven Lake a assaltou de novo. Era uma intuição que ela sabia que vinha de certos segredos que ela havia roubado, e de segredos que haviam sido roubados para ela. O poder de Astarte. As palavras de Nemesyn, saídas de um cadáver e numa visão de beira da estrada. Quando ela cometeria um erro? O que diferencia um erro numa tomada de decisões? Só o prazer da vida pode julgar… e ela estava tendo muito prazer.
Lá embaixo, na frente do hotel onde estavam hospedados, Belial se exercitava como se os dois não tivessem acabado de fazer sexo durante seis horas. Belin também não sentia nenhum cansaço, nada que anuviasse sua mente frenética, que quase ia além dos portais do paralelo. As letras dispersas nos trechos dos livros a impressionavam… e em algum momento ela conseguiu novos dados, ao escanear de novo um dos tomos obscuros que resistia bravamente à digitalização. Ali estava, o próprio nome da cidade ou bairro no mudno paralelo: Raven Lake.
As letras se embaralharam diante de Belin e ela enxergou algumas letras a mais… em vez de RAVEN LAKE, leu CRAVEN CLARKE.
Não havia um bar com esse nome na cidade?
Belin fechou o laptop, desligou o scanner, e resoluta desceu as escadas, gritando para Belial e passando correndo por ele:
“Vamos lá! Veja se consegue me pegar…”
UM MÊS E MEIO ANTES …
“Essa Belin. Onde está ela? Não foi ela que sangrou teu lindo pulso, coisa que só eu poderia ter feito? Ahhh … não me responda. Só me leve até ela. Não sei porquê, mas desconfio que ela não é tão fraca como você… e deve estar com aquele que vim buscar, o fugitivo.”
A voz feminina soou em meio aos sonhos de Belin, que acordou assustada, tremendo de frio na beira do precipício, o sol nascendo por trás das montanhas e seus raios começando a cair quentes sobre a pele dos dois amantes – Belin e Belial, ou se esta cena ocorresse um dia antes, Belin e André. Belin começou lentamente a entrar num estado de pânico que nunca havia sentido antes. Levantou-se de súbito, nua na beira do abismo.
“Calma! Calma!” gritou Belial. “É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique cal…” Mas gritar não adiantou muita coisa. Belial era rápido, mas Belin era – para sua surpresa – mais rápida ainda. E sim, ela se jogou do penhasco.
Belial lutou contra as emoções humanas que o tentavam paralisar e presenciar aquela queda sem fazer nada, só entrar em desespero; e correu depressa, dando a volta pela colina, para chegar até o corpo caído de Belin o mais rápido possível. E lá estava ela, o corpo nu lacerado pelas pedras e pelo impacto, levantando-se devagar… bem mais devagar que os ferimentos, que se fechavam numa celeridade inacreditável.
Belial estendeu a mão para sua consorte e a ajudou a se levantar, perguntando: “Que é que aconteceu?”
Mas Belin não conseguia responder.
FRAGMENTO QUATRO (SUPOSTAMENTE, O FINAL)
“Maldito assassino! Nós vamos te pegar.”
Craven Clarke, um bar à beira da estrada. Belin e Belial esperavam algum sinal, uma movimentação, numa curva da rodovia, a uns duzentos metros daquele bar e boate, onde já haviam estado algumas vezes, preparando o terreno. E lá vinha Dionísio, acelerando num carro negro – provavelmente roubado. Atrás dele, os amigos da moça que ele havia assassinado – corressem as coisas de modo um pouco diferente, e ela se chamaria Ananke; mas agora era apenas Lívia, morta no chão da boate.
Dionísio acelerou e entrou na pista, Caio e Tiago pegaram o carro e começaram a persegui-lo, estavam muito rápidos, de vez em quando precisavam frear bruscamente por causa de algum carro que vinha na pista contrária, logo à frente, numa curva fechada, um caminhão que vinha na outra pista não conseguiu frear a tempo, o carro em que Caio e Tiago estavam rodopiou várias vezes, batendo na traseira do carro de Dionísio, que foi jogado contra uma árvore, logo em seguida o outro carro também bateu na mesma árvore e uma enorme explosão iluminou toda aquela área, na pista o caminhão tombava se arrastando por vários metros, deixando uma imensa mancha de óleo.
Era o sinal que o casal de vampiros esperava.
Dionísio saiu do meio das chamas, sua pele levemente queimada, andou alguns metros no matagal e então encontrou uma enorme poça de lama onde cavou e satisfeito por ter conseguido o que queria, se enterrou profundamente, fechou os olhos num misto de dor e prazer, era hora de descansar, havia muito o que fazer ainda naquela cidade.
Belin e Belial puseram-se parados a poucos metros de onde o acidente havia acontecido, ela olhou para Belial num tom meio desconfiado:
“Você acha que ele percebeu algo?”
“Não creio. Mas só teremos certeza quando chegar a hora certa.”
Dentro do matagal, o silêncio, prestes a ser quebrado. Belin abraçou-se à Belial, sentia-se protegida junto dele, mas tinha medo do que ele era capaz para ter o que queria. E dentro de sua cabeça, ressoavam várias vozes femininas, falando da queda de Kronos, do fim da maldição, e da falha no plano de Belial…
As duas sombras Vulpinas sumiram em meio a uma densa neblina. E se Belial não tomasse cuidado, muito em breve teria muito medo do que Belin também seria capaz…
Hello again, friend of a friend, I knew you when
Our common goal was waiting for the world to end
Now that the truth is just a rule that you can bend
You crack the whip, shapeshift and trick the past again
METRIC, Black Sheep
PRIMEIRA ITERAÇÃO
UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos azuis brilharam no escuro, e a humanidade seguia seu rumo, sem notar a diferença.
Belial corria pela avenida, desfrutando do prazer e euforia das fraquezas humanas. Havia ido embora a desorientação das primeiras noites naquele corpo que se chamava André, e o vampiro, um Vulto Vulpino em busca do paradeiro de outros, havia deixado sua nova consorte, Belin, experimentar suas capacidades vulpinas, brincar.
Enquanto isso se deixava correr à toa, às cegas pela cidade decadente dos humanos. Estava quase se acostumando a ser algo entre humano e a entidade quase-imaterial que antes era. Depois da possessão de André. Belial quase deixava suas presas à mostra e revelava sua natureza através dos olhos azuis brilhantes, de tão fora de controle que corria, sem destino.
Ia correndo pela cidade labiríntica, mas escolhendo deixar suas pegadas pelas avenidas mais largas e cheias de carros, arriscando sua nova vida, embora apenas aparentemente. Os pés se movimentavam cada vez mais rápido, mas ainda dentro dos limites humanos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava as capacidades sobre-humanas de Belial. Passando debaixo de um viaduto, ele sentia suas passadas ganharem novo ritmo. Era cadenciado. Era sincopado. Era insano, aquele ritmo. Cuco, cuco, cuco: como um bater de coração cheio de adrenalina, tonto de dor e prazer. Os olhos de Belial subiram a tempo de enxergar a forma feminina caindo do viaduto. A queda espetacular e rodopiante desafiava as barreiras do próprio tempo, e Belial percebeu que havia seguido as linhas de força certas daquela cidade, chegando no momento exato do chocar de mais um ovo mental, mais uma vampira nascia.
Nascia e morria. Desfigurada, entre a morte e a vida, ela sugou o ar sujo pela primeira vez, pois só agora percebia quem era, quem sempre fora. “Ananke” era o nome que brotava de seus lábios machucados.
Belial e Belin contemplavam a garota quase cega, mutilada, suas medonhas cicatrizes revelando, pouco a pouco, penas afiadas cortando-lhe a carne. Ela era um monstro, mas um monstro útil: Belial a usaria contra Kronos, conseguiria a atenção daquele maldito milenar, e se tornaria o novo Maestro da Morte.
MEIA HORA ANTES…
Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma colina específica, onde ela podia se recostar num estranho monumento – um menir, ou outro tipo de pedra ereta – e ler trechos dos vários livros que trazia. O monumento era a razão do tombamento daquela área, tão próxima à vila, mas tão selvagem.
O hábito de ler trechos de livros separados, saltar pedaços como se movida por uma intuição vinda não sabe-se de onde, pouco a pouco fez de Belin alguém capaz de conectar fatos à primeira vista não relacionados… e também de cometer erros quase estúpidos, aos olhos das pessoas de raciocínio mais comum.
Esse raciocínio incomum foi o que trouxe Belin e seu amante – amante? Seu consorte, como ele às vezes a chamava, para aquela cidade grande, suja e labiríntica, cheia de ladeiras, grandes avenidas e viadutos. E agora ela observava da janela escancarada, Belial exercitando-se ao sol. A transformação em Vulto deixara Belin mais pragmática, e ela estava ocupada em escanear os livros que trouxera de sua cidade – aqueles livros de ocultismo que pertenciam a sua mãe, e aqueles livros mais obscuros ainda, que ela conseguiu trazer de Raven Lake além dos portais do paralelo, coisa que nem Belial conseguia fazer. Assim poderia ler os livros com mais conforto pelos lugares onde vagariam no futuro, direto no laptop que roubaram, ou em qualquer outro aparelho ainda menor que roubassem no futuro.
O processo de escaneamento desses livros de Raven Lake era lento e sofrido, porque alguma coisa neles atrapalhava o funcionamento das máquinas eletrônicas, e às vezes, a imagem resultante não era exatamente o que Belin enxergava com seus olhos violetas. Frustrada com mais um fracasso (até então só conseguira escanear um livro completo, e trechos pequenos de cinco outros), a moça – a vampira – contemplava Belial lá embaixo terminar suas séries de abdominais, levantar-se e gritar:
“Desça aqui! Veja se consegue me pegar … ”
UM MÊS E MEIO ANTES …
“O homem não saía de sua mente, tinha certeza de que não era alucinação. O que ele teria feito? O que ele queria dela? Seria um ladrão? Não, definitivamente não podia ser.”
Belin não podia estar mais errada. Agora ela sabia.
Belial era sim, um ladrão. Ladrão de mistérios no estranho lugar de onde veio, ladrão de vidas neste mundo mais sólido onde as escolhas são mais limitadas. Naquele instante, porém, com o sol nascendo por trás das montanhas e seus primeiros raios caindo quentes sobre a pele dos dois amantes na beira do precipício, Belial revelava outra de suas facetas: o de alguém apaixonado (pois se Belial era mesmo um demônio, não são demônios a essência da paixão?).
Os olhos púrpura de Belin arregalavam-se devagar com a chegada do sol, impiedoso e inclemente o sol lhe parecia, mesmo sendo a tênue luz que encerrava a madrugada deliciosa e selvagem que haviam passado. Os dois estavam deitados, seminus e suados e muito próximos da beirada do precipício, e Belin começava lentamente a entrar num estado de pânico que jamais havia sentido antes. Era o sol. Sim, era o sol que estava lhe causando aquilo. Semierguida, ela tentava inutilmente fugir, mas seus músculos um tanto cansados não lhe obedeciam direito. Olhos azuis lhe fitaram preocupados, e a mão de Belial – que um dia Belin conhecera como a mão de André, e que de início Belin pouco teria imaginado percorrendo-lhe todo o corpo como acontecera durante a noite – lhe segurou o ombro com firmeza.
“Calma. Calma. É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique calma. Eu devia ter avisado, meu amor. Venha, recoste-se em meu peito, respire fundo, vai passar se você aceitar que agora é outra pessoa. Sua verdadeira natureza se revelou, não consegue sentir?” A moça agarrou-se a Belial com força, os olhos recusando-se a deixar de olhar o sol nascente. Belial continuou falando, já que Belin a princípio não conseguia responder nada:
“É só um reflexo. Não é real, pelo menos não aqui em seu mundo. Tenha calma, respire fundo, já disse, o sol NÃO PODE TE FERIR! Sua pele é ainda a mesma, minha querida, sua natureza só mudou por dentro, acha que o poder ia te deixar tão desprotegida durante metade do tempo? Vamos, respire fundo, isso, e com mais calma, perceba que seu corpo não está morto como sua mente quer te enganar… a noite que passamos não prova isso mais do que nunca, Belin?”
SEGUNDA ITERAÇÃO
UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos azuis brilharam no escuro, o colapso das realidades, uma explosão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, dor, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade seguia seu rumo, inquieta em seu sonhos despertos, e ávida de sua própria existência.
Belial corria pela avenida principal da cidade labiríntica, e Belin estava quase o alcançando. Ela ria com a brincadeira que testava suas capacidades vulpinas, e os dois quase expunham suas presas, revelando suas naturezas através dos olhos brilhantes, de tão fora de controle que corriam, sem destino. Os carros engarrafados num entroncamento eram perfeitos para que eles se movimentassem cada vez mais rápido e sem perigo, mas ainda dentro dos limites humanos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava as capacidades sobre-humanas do casal de vampiros, mas Belin não temia mais o sol como havia acontecido no seu primeiro alvorecer após a transformação vulpina.
Passando perto de um viaduto, eles ouviram uma ambulância correndo a alta velocidade, desviando-se dos carros que lhe dava passagem, e o ruído da sirene parecia diferente, num ritmo bizarro. Era cadenciado. Era sincopado. Era insano. Cuuuuuuco, cuuuuuuuuco, cuuuuuuuuco… como um bater de coração acelerado, tonto de dor e prazer. Os olhos de Belin e Belial enxergaram a tempo para onde a ambulância se dirigia – uma moça havia se jogado do viaduto.
De repente, Belin estacou e segurou o ombro de Belial – percebeu, e mostrou ao companheiro, que eles haviam seguido as linhas de força daquela cidade, chegando logo após o chocar de mais um ovo mental, mais uma vampira havia nascido. Nascia e morria. Desfigurada, entre a morte e a vida, ela sugou o ar sujo pela primeira vez, pois só agora percebia quem era, quem sempre fora. “Ananke” era o nome que brotava de seus lábios machucados; e mesmo a cinquenta metros de distância, os dois Vultos conseguiram ouvir aquele nome terrível.
Os paramédicos e enfermeiros lhe davam assistência, ela lhes parecia muito ferida, e corria risco de vida. Belial sabia que ela era um monstro, mas um monstro útil: Belial a usaria contra Kronos, conseguiria a atenção daquele maldito milenar, e se tornaria o novo Maestro da Morte. Se havia alguma coisa em que era habilidoso, era nas artes da ilusão: agiu rápido, e os dois conseguiam contemplar a a garota quase cega, mutilada, suas medonhas cicatrizes revelando, pouco a pouco, penas afiadas cortando-lhe a carne; mas os enfermeiros e paramédicos enxergavam apenas o que queriam ver, aquilo que foram socorrer: uma garota muito ferida, correndo risco de vida.
Ao longe, do lado de um dos poucos orelhões que funcionava de fato naquela cidade, uma figura observava a acidentada, seus socorristas e os dois vampiros, sem ser percebida.
MEIA HORA ANTES…
Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma certo precipício, de onde conseguia enxergar, lá embaixo, uma colina onde havia um menir, um monumento antigo feito de pedra, provavelmente ereto ali pelos antigos nativos da terra e que era a razão do tombamento do bosque.
O hábito de ler trechos de livros separados, saltar pedaços como se movida por uma intuição vinda não sabe-se de onde, pouco a pouco fez de Belin alguém capaz de conectar fatos à primeira vista não relacionados… e também de cometer erros quase estúpidos, aos olhos das pessoas de raciocínio mais comum.
Talvez o pior desses erros foi aquele que trouxe Belin e seu amante – amante? Ele a chamava de consorte – para a grande cidade labiríntica, tão suja e cheia de viadutos, avenidas intermináveis, encruzilhadas e ladeiras. Aquela cidade a frustrava, mas os tomos de ocultismo que pertenciam a sua mãe, e mais aqueles livros mais obscuros ainda, que ela conseguiu trazer de Raven Lake além dos portais do paralelo, com a ajuda de Belial, lhe davam indicações soltas que, quando unidas, davam a impressão de que a existência dela, Belin, era algo predestinado, e predestinado a revelar seu maior potencial ali, na cidade grande.
Quase o sonho ingênuo de uma adolescente do interior, e na prática era isso mesmo. Estar ao lado de seu amante vampírico, observá-lo exercitar-se ao sol – seus poderes eram menores durante o dia, mas o sol não os machucava, no máximo incomodava e excitava em certos momentos – e terminar de ajeitar a mochila onde guardava um laptop roubado. Na memória daquele computador, todos os livros de sua antiga biblioteca, mais os tomos arcanos de Raven Lake, escaneados sem maiores problemas. A memória do aparelho parecia sedenta daqueles dados. Com certeza, o computadorzinho estava melhor em suas mãos do que nos daquela mulher na beira da estrada, que pedia carona.
Às vezes Belin se arrependia daquilo, como se arrependia de não ter cortado ainda seus cabelos, que a cada noite a incomodavam mais. Os dois arrependimentos tinham o mesmo peso. Se a mãe de Belin, dona da maioria dos originais daqueles livros, soubesse o que andava pela mente e alma de sua filha (será que ela ainda era filha daquela mulher que morrera há tantos anos?), diria que a balança moral de Belin estava totalmente desequilibrada. Belial responderia que Belin estava agora além da moralidade convencional – às vezes o vampiro parecia propenso a uns discursos prontos, que irritavam um pouquinho Belin, mas era só aquilo que a incomodava, tudo o mais a deliciava e a fazia não pensar em perigos, riscos, mudanças, consequências…
Belial terminou sua série de abdominais, levantou-se e pegou Belin nos braços, que havia acabado de pôr a mochila nas costas, beijando-a profundamente e, depois de morder os lábios da vampira, empurrou-a e gritou:
“Vamos lá! Veja se consegue me pegar…”
UM MÊS E MEIO ANTES …
“Quem poderia ter me seguido? Quem saberia deste lugar?”
Belin acordou tremendo de frio na beira do precipício, o sol nascendo por trás das montanhas e seus primeiros raios começando a cair quentes sobre a pele dos dois amantes. Primeiro, teve aquela impressão paranoica, vinda de algum sonho ou pesadelo, de que alguém a havia seguido até aquele lugar onde costumava ler, e a surpreendera agarrada com aquele estranho, ambos seminus e suados, saídos de uma madrugada deliciosa e selvagem. Belin começou lentamente a entrar num estado de pânico que nunca havia sentido antes.
Belial a observou intrigado, mas não se mexeu. E para piorar as coisas, o sol. Semierguida, ela tentou fugir do sol e daquela presença que os observava, mas seus músculos um tanto cansados não lhe obedeciam direito. Olhos azuis a fitaram, preocupados, e a mão de Belial, que um dia se chamou André, lhe segurou o ombro com firmeza.
“Calma. Calma. É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique calma. Eu devia ter avisado. Respire fundo, vai passar se você aceitar que agora é outra pessoa. Não é mais humana, mas o sol não consegue te ferir! Sua verdadeira natureza se revelou, será que não percebe?” A moça agarrou-se a Belial com força, os olhos fugindo do sol nascente. Belial continuou falando, já que Belin a princípio não conseguia responder nada:
“É só um reflexo. Não é real, pelo menos não aqui em seu mundo. Tenha calma, respire fundo, já disse que o sol NÃO PODE TE FERIR! Sua pele é ainda a mesma, minha querida, sua natureza só mudou por dentro, acha que o poder ia te deixar tão desprotegida durante metade do tempo? Vamos, respire fundo, isso, e com mais calma, perceba que seu corpo não está morto como sua mente quer te enganar… a noite que passamos não prov...” Belin o interrompeu e cobriu a boca do vampiro com a mão, sussurrando:
“Calaboca, calaboca… shhh… ela vai nos ouvir.”
FRAGMENTO UM
DIONÍSIO AUTRAN ERA UM HOMEM COMO QUALQUER OUTRO. Um dos poucos defeitos que tinha (mas, espere aí, se era um homem comum, então devia ter muitos defeitos! Mas refiro-me a defeitos assumidos diante dos outros) era ser um fumante inveterado.
Mesmo que lhe pedissem para parar de fumar dentro de casa ou do carro, ele continuava. E foi assim que um dia ele corria pela estrada, fumando enquanto dirigia, sozinho porque sua namorada havia se enchido do fedor de nicotina fortíssimo que impregnava o carro. E para piorar, uma dor de cabeça atroz.
Não sei se um dos outros poucos (poucos?) defeitos de Dionísio Autran era ser azarado – mas com certeza aquilo foi um grande azar: enquanto Kronos, o Imortal Maldito, entrava no matagal à beira da estrada e cavava um buraco buscando o esquecimento desta vida, Dionísio passava de carro e jogava um resto de cigarro aceso justamente sobre a poça de óleo que o carro de Kronos, parado no acostamento, derramava com uma certa urgência.
Um estrondo correu pelo céu, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, dois olhos esverdeados brilharam no escuro, uma tentativa de possessão, poças de óleo numa pista de carros, um homem andando por um matagal, o mesmo homem cavando um buraco na lama, um carro largado na pista, uma dor de cabeça atroz, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade seguia seu rumo, inquieta em seu sonhos despertos, e ávida de sua própria existência, enquanto mais um ovo de Vulto Vulpino chocava de maneira imprevista, ávida de sua própria existência.
Abrindo a porta da ruína que fora o carro de Dionísio Autran, saiu … apenas Dionísio, pegando fogo, seus olhos esverdeados brilhando mais forte que as chamas da explosão, e junto com a porta do carro abriu-se a porta para o paralelo, expulsando Dionísio, o Andarilho, para uma das autoestradas que corriam por aquela dimensão paralela.
Dionísio sabia que estava ferido, mas também sabia que era um trapaceiro – e sendo filho de Kronos, o Maldito, empurrou seus próprios ferimentos fatais para frente… no próprio tempo… sabendo que tinha que passá-los adiante, gerar mais um Vulto, e esse Vulto que lidasse com as consequências do nascimento dele, Dionísio. Uma cruel aplicação do princípio dos filhos pagando pelo pecado dos pais.
Dentro de si, da mesma forma que em Kronos, ele SABIA que haviam algumas sementes que, invadindo uma alma humana, poderiam brotar como outros Vultos – e Vultos viriam do além da Espiral Sem Nome, tomariam um novo nome e teriam poder, como acontecera agora mesmo com ele. A necessidade – em grego, ananke – sobrepujou Dionísio e tornou-se desejo, desejo de procriar e gerar. Mas havia também o medo de que o Vulto gerado pudesse se voltar contra ele, e buscar vingança.
E, em sua alma de Vulto, veio a imagem de Lívia, cabelos ruivos e encaracolados envolvendo um rosto belo, sensual e angustiado.
Houve um momento em que o desejo superou o medo, mas esse momento foi embora. E ali, paralisado no meio da autoestrada, Dionísio se perguntava o que fazer. Como não confundir aquele instante de paralisia com indecisão? Mas, se havia um traço de personalidade que pouco habitava a alma de Dionísio, era a indecisão. O que ele sentia, ali parado como se esperasse a chuva despencar sobre seu corpo e alma, era apreensão. Ansiedade. A apreensão do conhecimento. Ele sabia, conhecia, e conhecendo, tinha poder. Mas esse poder não lhe dava – ironicamente – o direito de fazer o que até há pouco estava desejando fazer. Certamente, o arrependimento viria, tão certeiro quanto a flecha de um Cupido.
FRAGMENTO DOIS
COMO ELA QUERIA CORTAR O CABELO, deixá-lo curtinho como o da mulher que pedia carona na estrada. Belin lembrava-se perfeitamente do jeito daquela mulher: devia ter uns vinte e oito anos, ainda não podia ter passado dos trinta … cabelos curtos num penteado excitante, de mechas ousadas e arrepiadas, deixando a nuca exposta. E Belin tinha uma bela nuca, ainda mais excitante que a da mulher que ela e Belial roubaram no meio da estrada… o que significava que ficaria ainda mais excitante que sua vítima.
Desejar o que é dos outros – antigamente, Belin teria considerado isso errado. Mas, de qualquer forma, aquela mulher parecia sorrir quando os dois aceleraram o carro levando a mochila do laptop; e imitar um corte de cabelo não era, na verdade, um roubo. Então, tudo bem. Ela podia empurrar quaisquer arrependimentos para a frente… no próprio tempo.
A'arab Zaraq, uma ninhada de Vultos Vulpinos. Depois de escanear todos os livros, os de Raven Lake e os de sua própria mãe, Belin selecionou vários trechos e diagramas que indicavam a grande, suja e labiríntica cidade onde quatro autoestradas convergiam como numa encruzilhada… ali se daria o Princípio das Sombras, o reunir de uma a'arab zaraq. Assim orientavam os tomos de Raven Lake, seus trechos copiados e colados sobre o mapa da área ao redor da grande cidade.
Um dos tomos também falava de Kronos e Nemesyn, do primeiro casal de vampiros; falava como Kronos baniu Nemesyn para a Espiral Sem Limites após uma briga entre os dois; e de como esse ato abriu as portas para todos os outros Vultos Vulpinos, dispostos a vagar pela terra por algum tempo, exultar em suas novas máscaras e depois retornar à Espiral, para mais tarde serem chocados de novo por outros Vultos, repetindo eternamente esse ciclo… tudo enquanto Kronos não conseguia se livrar de seu corpo hospedeiro, um verdadeiro imortal, um verdadeiro imortal maldito.
Não havia nenhuma profecia naqueles tomos que mostrasse como Kronos poderia ser liberto de sua maldição, nem como seu poder imenso poderia ser roubado – mas Belial achava que havia um maneira.
Belin achava que aquela maneira era como andar pelas bordas de um precipício, mas guardava seus medos dentro de si mesma.
FRAGMENTO TRÊS
ENTÃO ERA TUDO VERDADE. O MISTÉRIO. PARTIDO EM DOIS. Uma parte era aquele Mistério realmente roubado de Astarte, ou Shub-Niggurath, ou Ereshkigal, não importa, era a mesma vampira; a outra parte era algo que já fez parte de um outro vampiro – mas não um vampiro como os Vultos, e que não existia na mesma realidade que Belin.
Ridículo, história ridícula. Foi o que ela pensou a princípio.
Tudo que Belin precisava era se livrar dessa história, e ela só conseguia fazer isso – temporariamente – ao se alimentar. Sangue. Emoções. Segredos.
A estrada se estendia até o horizonte, e do horizonte para aquela cidade grande e suja, e Belin sabia que, se seguisse para o lado oposto, encontraria sua pequena cidade, esperando por ela, a casa fechada como nunca esteve antes. Pelo menos até que começassem a investigar o desaparecimento dela, de André e sua mãe Eleonora. Mas ela preferia deixar esses problemas para depois, empurrá-los para o futuro, porque a estrada exercia um fascínio poderoso – talvez mais poderoso que o que Belial exercia sobre ela.
Postos de parada na estrada, como aquele onde ela estava, eram perfeitos para o que ela pretendia: um hotelzinho mixuruca, um posto de gasolina, um bar. Enquanto Belial terminava de escanear os livros no hotel, ela se alimentaria sem maiores problemas.
Não, não no bar. O posto de gasolina era mais adequado: uma loja de conveniência, rapazes parados com seus carros tocando músicas, vindos de uma cidade próxima para farrear e fazer pegas. Porque tinha sempre que cair naquele esteriótipo de mulher fácil e sensual, quando se é uma vampira? Talvez porque seja mais fácil caçar assim. E talvez também porque ela se sentia extremamente sensual ao agir assim. Às vezes, sentia-se mais excitada do que quando estava com Belial.
O rapaz musculoso não estranhou quando ela pediu que eles fosse para trás do posto, após o primeiro beijo. Lá ela a tomou nos braços, e ela sentiu a força de seus braços … e também sentia, quase que automaticamente, que ela podia ser muito mais forte que ele. Aquele rapaz – Luciano era o nome – levara alguns anos para ganhar aquele físico, malhando muito e tomando alguns esteroides, mas não o suficiente para lhe fazer mal à saúde… tudo para ser mais forte que os outros, e atrair a atenção das mulheres. Um menino rejeitado pelas meninas, e perseguido pelos outros garotos, ainda se escondia dentro dele. Mas aquilo que alimentava Belin era sua força de vontade, sua vontade de ser melhor que os outros, mais forte, um exemplar atraente da espécie humana.
Em Belin, aquilo se traduzia no fato puro e simples de que ela era mais forte que ele, apesar de seus músculos não terem crescido – pelo contrário, ela sentia-se, e era, muito mais feminina que minutos atrás, o cheiro de mulher deixava Luciano louco, aquele cheiro vindo do prazer que ela sentia ao nutrir-se dele, e da própria atratividade que Luciano exalava, que era roubada por Belin. Luciano sentia-se fraco diante da vampira – e pensou que aquela mulher era tão linda que o deixava meio com os pneus arriados, não estranhando aquela sensação de fraqueza ao olhar fundo nos seus olhos (eram quase púrpuras, pensou o rapaz) enquanto se beijavam de olhos abertos.
Aproveitando o fascínio idiota do rapaz por ela, ela segurou forte na cintura de Luciano, e exigiu – aquilo ficou claro por sua linguagem corporal, seus movimentos dominantes e lascivos – que ele ficasse quieto para que ela se aproveitasse dele. E, é claro – era inevitável – ele deixou. Ela praticamente rasgava a camisa de Luciano enquanto lambia o pescoço do moço, a língua correndo com cada vez mais força, até que a excitação do drenar fosse tanta em Belin, que todos os seus dentes tornaram-se afiados, mais afiados, prontos para rasgar aquele pescoço.
Ela nunca havia matado ninguém até aquele dia. E sabia que um dia seria necessário – porque então não treinar com aquele rapaz? Foi o pensamento que lhe correu pela mente. Não seria delicioso sorver sua morte? E o que viria com aquela morte? Que coisas poderiam ser drenadas no momento terrível da agonia final? E que quantidade enorme de sangue ela poderia provar … cinco litros de sangue, não era isso que diziam que era a média numa pessoa? A gula, a sede, quase a sobrepujava.
Mas ela não conseguiu – parou de lamber aquele pescoço, soltou o torso de Luciano, e ele olhou espantado para Belin… e mais espantado ficou, quando ela começou a balbuciar, “Vá embora… rápido…” e percebeu que os dentes da garota tão linda que estava pegando eram afiados como os de um animal, não, afiados como as presas de um monstro!
Belin levou a mão aos lábios, instintivamente, ao perceber o terror tomando conta de Luciano – e sabia que agora não tinha jeito. Teria de matá-lo, ou ele poderia dar a língua nos dentes. O moço tentou sair correndo, mas o braço aparentemente delicado, mas terrivelmente forte, de Belin cortou sua fuga. Antes que conseguisse gritar, sua garganta foi dilacerada por presas, sim, por presas afiadas como as de um monstro…
O gorgolejar do sangue em sua garganta, sangue roubado do qual ela não precisava para sobreviver, era tão intenso, tão visceral, que Belin esqueceu qualquer culpa por aquela morte, pelo menos naquele instante. E embora fosse prudente que o moço não fosse drenado até o fim (porque cadáveres exangues chamam bastante atenção!), todos aqueles cobiçados cinco litros foram sugados com força, aquela força também roubada, e quando o cadáver de Luciano desabou no chão, Belial sentia como se tivesse tomado um porre e uma feijoada, tudo na maior pressa do mundo.
A sorte – aquela sorte incomum que sempre protegera Belin e que parecia aumentada desde sua transformação – fez com que ninguém fosse atrás do rapaz naquele momento, nem naquela noite. E a sorte foi grande, porque se poucos aceitariam um monstro em forma feminina, lambendo os lábios correndo sangue, lábios entreabertos exibindo dentes afiadíssimos, e um cadáver recém-assassinado jogado no chão do lado da garota ajoelhada, atrás de um posto de gasolina de beira de estrada, menos pessoas ainda aceitaram em são consciência que o cadáver – aquele óbvio cadáver de garganta dilacerada – sorrisse, começasse a falar e declamar poesia…
E se Belin começava a sentir horror pelo que tinha feito, um horror ainda maior a tomou quando ouviu o que o cadáver dizia, lhe fez perguntas de volta e as respostas – segredos – vinham diretas como os raios do sol… e em meio àquilo tudo, a vampira sentia como se caminhasse pela beira de um precipício…
TERCEIRA ITERAÇÃO
UM ESTRONDO CORREU PELO CÉU, vozes do além foram ouvidas, relâmpagos traçaram padrões revelando segredos macabros, mas os padrões foram interpretados de forma errada, as vozes foram mal ouvidas e o estrondo soou à toa. Dois olhos vermelhos brilharam no escuro, a união de duas realidades, duas explosões, poças de óleo numa pista de carros, dois acidentes, dois homens andando pelo matagal, um homem cavando um buraco de lama, o outro se aproveitando da terra fofa para cavar menos, vários carros achatados largados pela pista, o desejo de esquecimento, prazer, sono, e a humanidade desperta no meio de seu sono, levanta para esvaziar a bexiga, e logo volta a dormir apesar da noite tão tempestuosa…
Belin corria pela avenida principal da cidade labiríntica, e Belial estava quase a alcançando. Ela expunha suas presas sem medo, porque ninguém as enxergaria, naquela velocidade com que corria. Nem ninguém enxergaria seus olhos brilhando tão púrpuras, e ela sentia-se fora do controle, mas como quem corre seguindo trilhos. O sol rachava a pele dos transeuntes, inclemente, e limitava suas capacidades sobre-humanas, mas Belin acolhia o sol, o calor, a sensação de queimadura na pele, aquela quase-dor, quase-prazer…
Então, aconteceu. Ela corria tão rápido que o tempo parecia parar. O tempo parecia ter um gosto, um sabor, porque ela sentia o sabor do tempo em sua língua e presas. Não era mais o vento que ela cortava em sua corrida: era o tempo e o espaço. Belial ficou para trás e do grande viaduto à frente, caiu uma forma… como uma menina, uma mulher caindo para a morte. Era um vislumbre translúcido… uma possibilidade não-concretizada… e tão necessária. Belin, seguindo um puro instinto, saltou no ar e agarrou aquela forma como se sua vida dependesse disso.
Os olhos da aparição feminina brilharam púrpuras, e Belin sentiu toda aquela energia carregada e acumulada na forma invadir seu corpo, cair por dentro de sua garganta, queimando, e deixando aquele sabor do próprio tempo a penetrar.
Em seus ouvidos, latejava aquela voz que um dia Belin ouvira da boca de uma de suas vítimas mortas: “Eu sou Nemesyn, eu sou Ananke, eu sou Astarte, eu sou Belin, eu sou você e sou o Todo.” A sensação, a descarga orgásmica daquela essência a se reunir a dela, era como da vez em que Belial implantara em Belin uma parte de Astarte – mas bilhões de vezes mais forte. Era cadenciada. Era sincopada. Era insana, cuco, cuco, cuco… como um coração acelerado, tonto de dor e prazer, que cantava uma canção com seus batimentos.
Mesmo a apenas cinquenta metros de distância, Belial não conseguiu perceber nada – apenas viu Belin se jogar no ar e cair no chão.
A cacofonia nos ouvidos de Belin começou a diminuir, e se esvaiu com uma última frase, “Adormecerei dentro de você, até o momento certo chegar…” Belial estendeu a mão para sua consorte e a ajudou a se levantar, perguntando: “Que é que aconteceu?”
Mas Belin não conseguia responder.
MEIA HORA ANTES…
Belin sempre gostara de ler. Às vezes, em sua pequena cidade natal, enchia a mochila de livros e entrava pelo bosque, para alcançar uma colina específica, onde ela podia se recostar num estranho monumento – um menir, ou outro tipo de pedra ereta – e ler trechos dos vários livros que trazia. O monumento era a razão do tombamento daquela área, tão próxima à vila, mas tão selvagem. Quase tão selvagem quanto ela.
Aquela intuição selvagem que a tomava quando lia os trechos dos tomos de Raven Lake a assaltou de novo. Era uma intuição que ela sabia que vinha de certos segredos que ela havia roubado, e de segredos que haviam sido roubados para ela. O poder de Astarte. As palavras de Nemesyn, saídas de um cadáver e numa visão de beira da estrada. Quando ela cometeria um erro? O que diferencia um erro numa tomada de decisões? Só o prazer da vida pode julgar… e ela estava tendo muito prazer.
Lá embaixo, na frente do hotel onde estavam hospedados, Belial se exercitava como se os dois não tivessem acabado de fazer sexo durante seis horas. Belin também não sentia nenhum cansaço, nada que anuviasse sua mente frenética, que quase ia além dos portais do paralelo. As letras dispersas nos trechos dos livros a impressionavam… e em algum momento ela conseguiu novos dados, ao escanear de novo um dos tomos obscuros que resistia bravamente à digitalização. Ali estava, o próprio nome da cidade ou bairro no mudno paralelo: Raven Lake.
As letras se embaralharam diante de Belin e ela enxergou algumas letras a mais… em vez de RAVEN LAKE, leu CRAVEN CLARKE.
Não havia um bar com esse nome na cidade?
Belin fechou o laptop, desligou o scanner, e resoluta desceu as escadas, gritando para Belial e passando correndo por ele:
“Vamos lá! Veja se consegue me pegar…”
UM MÊS E MEIO ANTES …
“Essa Belin. Onde está ela? Não foi ela que sangrou teu lindo pulso, coisa que só eu poderia ter feito? Ahhh … não me responda. Só me leve até ela. Não sei porquê, mas desconfio que ela não é tão fraca como você… e deve estar com aquele que vim buscar, o fugitivo.”
A voz feminina soou em meio aos sonhos de Belin, que acordou assustada, tremendo de frio na beira do precipício, o sol nascendo por trás das montanhas e seus raios começando a cair quentes sobre a pele dos dois amantes – Belin e Belial, ou se esta cena ocorresse um dia antes, Belin e André. Belin começou lentamente a entrar num estado de pânico que nunca havia sentido antes. Levantou-se de súbito, nua na beira do abismo.
“Calma! Calma!” gritou Belial. “É só o sol. Eu já imaginava que isso ia acontecer, fique cal…” Mas gritar não adiantou muita coisa. Belial era rápido, mas Belin era – para sua surpresa – mais rápida ainda. E sim, ela se jogou do penhasco.
Belial lutou contra as emoções humanas que o tentavam paralisar e presenciar aquela queda sem fazer nada, só entrar em desespero; e correu depressa, dando a volta pela colina, para chegar até o corpo caído de Belin o mais rápido possível. E lá estava ela, o corpo nu lacerado pelas pedras e pelo impacto, levantando-se devagar… bem mais devagar que os ferimentos, que se fechavam numa celeridade inacreditável.
Belial estendeu a mão para sua consorte e a ajudou a se levantar, perguntando: “Que é que aconteceu?”
Mas Belin não conseguia responder.
FRAGMENTO QUATRO (SUPOSTAMENTE, O FINAL)
“Maldito assassino! Nós vamos te pegar.”
Craven Clarke, um bar à beira da estrada. Belin e Belial esperavam algum sinal, uma movimentação, numa curva da rodovia, a uns duzentos metros daquele bar e boate, onde já haviam estado algumas vezes, preparando o terreno. E lá vinha Dionísio, acelerando num carro negro – provavelmente roubado. Atrás dele, os amigos da moça que ele havia assassinado – corressem as coisas de modo um pouco diferente, e ela se chamaria Ananke; mas agora era apenas Lívia, morta no chão da boate.
Dionísio acelerou e entrou na pista, Caio e Tiago pegaram o carro e começaram a persegui-lo, estavam muito rápidos, de vez em quando precisavam frear bruscamente por causa de algum carro que vinha na pista contrária, logo à frente, numa curva fechada, um caminhão que vinha na outra pista não conseguiu frear a tempo, o carro em que Caio e Tiago estavam rodopiou várias vezes, batendo na traseira do carro de Dionísio, que foi jogado contra uma árvore, logo em seguida o outro carro também bateu na mesma árvore e uma enorme explosão iluminou toda aquela área, na pista o caminhão tombava se arrastando por vários metros, deixando uma imensa mancha de óleo.
Era o sinal que o casal de vampiros esperava.
Dionísio saiu do meio das chamas, sua pele levemente queimada, andou alguns metros no matagal e então encontrou uma enorme poça de lama onde cavou e satisfeito por ter conseguido o que queria, se enterrou profundamente, fechou os olhos num misto de dor e prazer, era hora de descansar, havia muito o que fazer ainda naquela cidade.
Belin e Belial puseram-se parados a poucos metros de onde o acidente havia acontecido, ela olhou para Belial num tom meio desconfiado:
“Você acha que ele percebeu algo?”
“Não creio. Mas só teremos certeza quando chegar a hora certa.”
Dentro do matagal, o silêncio, prestes a ser quebrado. Belin abraçou-se à Belial, sentia-se protegida junto dele, mas tinha medo do que ele era capaz para ter o que queria. E dentro de sua cabeça, ressoavam várias vozes femininas, falando da queda de Kronos, do fim da maldição, e da falha no plano de Belial…
As duas sombras Vulpinas sumiram em meio a uma densa neblina. E se Belial não tomasse cuidado, muito em breve teria muito medo do que Belin também seria capaz…